Campo Grande 00:00:00 Segunda-feira, 15 de Dezembro de 2025


Preciso te contar uma história Domingo, 14 de Dezembro de 2025, 13:45 - A | A

Domingo, 14 de Dezembro de 2025, 13h:45 - A | A

Coluna Preciso te contar uma história

Sob a Crina do Vento

Por Rodrigo Andrade Pereira

Da coluna Preciso te contar uma história
Artigo de responsabilidade do autor

A história de um homem que some no próprio caminho.
E de um sertão que nunca mais dorme direito.

IA, prompt por Bruno Andrade

ColunaPrecisoTeContarUmaHistoria

..

Era madrugada ainda, mas o céu já se preparava para amanhecer. Havia uma claridade inquieta no horizonte, um lume azulado que parecia vir de dentro da terra. João, o vaqueiro, acordou antes do primeiro galo, sentindo o cheiro do capim molhado e o murmúrio distante do rio. Sonhara com cavalos correndo sobre as nuvens — e uma mulher, metade sombra, metade relâmpago, que o chamava pelo nome antigo, aquele que ele esquecera de usar.

Montou no cavalo sem pensar, guiado por uma força que não vinha do corpo. O vento passava por ele como se o conhecesse de outros tempos, penteando-lhe o rosto, sussurrando segredos nas orelhas do animal. A cada galope, o mundo parecia se dissolver — a cerca, o curral, a estrada — tudo virava poeira de estrelas. E a sombra que o movia também o iluminava.

No meio da vereda, ele viu o reflexo da moça nas águas de uma pequena lagoa. Ela não estava ali, mas sua imagem tremia, viva, como uma lembrança que não quer morrer. Tinha cabelos longos, de rio em cheia, e os olhos que refletiam tanto o céu quanto o inferno. Quando o vento passou, foi como se ela tivesse soprado dentro dele um clarão. O cavalo empinou, e o coração de João se ergueu junto — era o chamado.

Debaixo das sete quedas do rio, ele desceu para se banhar. A água gelada ardia como veneno e lavava como bênção. Cada gota parecia transformar-lhe a pele, dissolver o tempo. Ao abrir os olhos, viu que não era mais madrugada: era noite e manhã ao mesmo tempo, como se o sol e a lua tivessem se encontrado sobre sua cabeça.

A mulher surgiu na margem, nua como uma prece, coberta apenas pelos cabelos que lhe tocavam os joelhos. A luz que vinha dela não era do sol, era uma claridade antiga, feita de fogo e silêncio. Ela se aproximou sem pressa, com o passo de quem conhece o destino de todos os caminhos. Tocou-lhe o rosto, e o toque era ao mesmo tempo carícia e lâmina.

— “É hora de voltar pra onde não se volta”, disse ela.

O cavalo relinchou, o vento girou a copa das árvores, e João sentiu o chão se abrir. Tudo virou galope: o corpo, a alma, o tempo. Corriam sobre campos de luz, atravessando vales de sombra e mares de prata. O mundo inteiro pulsava no ritmo da crina do vento.

Mas havia algo em João que resistia: uma lembrança do curral, o cheiro do couro e da terra, o riso de uma criança que ele não sabia se era sua ou apenas lembrança de outro tempo. Quis perguntar à mulher quem ele fora, mas a voz lhe saiu em redemoinho. Ela apenas sorriu — e o sorriso era como o corte de uma estrela no escuro.

— “O que chamam de vida é só a poeira do caminho”, ela murmurou. “Mas há quem cavalgue o vento e se torne parte dele.”

Então João entendeu. O cavalo sob seus pés não era mais bicho, era centelha. O galope não fazia barulho: era som de trovão contido, de respiração divina. A serra se abria em espelhos, e em cada um ele via um rosto seu — o menino, o homem, o que viria depois.

Quando o silêncio veio, restava apenas o perfume do capim queimado e um fio d’água brilhando sob a lua.

Dizem que, nas madrugadas claras, um cavalo passa veloz pelas serras, sem cavaleiro. O vento, quando sopra, traz consigo um murmúrio distante — a mistura de reza e desejo. É João, o vaqueiro, que nunca voltou.

Ou talvez seja apenas a sombra que o move. E que, até hoje, o ilumina.

Desde o dia em que João desapareceu sob a crina do vento, o sertão nunca mais dormiu em silêncio. O ar parece guardar sua respiração — e há madrugadas em que o vento sopra como se tivesse lembrança. Nessas horas, o povo se cala. O gado pressente, o cão uiva, e até o rio abranda a corrente.

As velhas rezadeiras dizem que ele não morreu: apenas atravessou o tempo. Que se tornou sopro e clarão, cavalo e relâmpago. E que, quando o vento se ergue sobre as serras, há um brilho de ouro que pinga na noite, refletindo como prata nas poças do chão — um ouro que não é metal, mas memória; uma prata que não é moeda, mas caminho.

É o amor, dizem, escorrendo entre o mundo dos vivos e o dos encantados. “É noite do meu amor”, sussurra o vento, como se repetisse a promessa feita à mulher do relâmpago, lá nas sete quedas do rio. Um amor que não busca carne, mas encontro. Que não quer posse, mas travessia.

Na vila, ainda há quem jure ter ouvido esse sussurro. Vem de repente, misturado ao som das folhas, e diz palavras que ninguém entende — só o coração entende. É como se o próprio sertão cantasse, lembrando que tudo o que brilha nasce do escuro. Que todo ouro pinga, um dia, da sombra. Os vaqueiros mais antigos contam que João se fez vento para poder amar a Noite sem jamais prendê-la. E que ela, em retribuição, borda na pele do mundo pequenos lampejos — pedaços de prata e luz que os homens chamam de estrelas.

Por isso, quando o vento passa, há quem levante o rosto e o deixe tocar o peito, como quem recebe bênção. Porque, naquele sopro antigo, há um eco de galope, uma voz distante, e o rumor de um amor que nunca se acabou. E o sertão inteiro, nesse instante, parece brilhar — ouro e prata, sombra e claridade.

É a lembrança viva do vaqueiro que se tornou vento.

E da mulher que, sendo Noite, ainda o espera.

“Meu amor...” sussurra a crina do vento.

A partir da canção “Galope Rasante” de Zé Ramalho

• • • • •

Rodrigo Andrade Pereira é professor da rede pública em Mato Grosso do Sul e doutor em Literatura Brasileira. Estuda as vozes que moldam o imaginário do país e insiste em ouvir o sertão como se cada rajada de vento ainda carregasse um verso antigo. Quando escreve, tenta traduzir esse rumor em histórias, mesmo sabendo que algumas só se revelam para quem escuta de madrugada.

Comente esta notícia


Reportagem Especial LEIA MAIS