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Preciso te contar uma história Domingo, 17 de Agosto de 2025, 13:44 - A | A

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Coluna Preciso te contar uma história

O Jogo Limpo

Por Bruno Andrade

Da coluna Preciso te contar uma história
Artigo de responsabilidade do autor

Uma lição aprendida entre poeira, gols sofridos e uma regra inusitada numa cidadezinha do interior do Brasil

Prefeitura Municipal de Itapetinga

ColunaPrecisoTeContarUmaHistoria

Futebol de várzea

Tenho uma história pra contar de quando eu ainda era uma criança. Cresci numa cidade no interior do interior do Mato Grosso do Sul, e as ruas de terra eram nosso estádio de futebol — com jogadas paradas pelos carros que passavam ou para dar licença a algum pedestre que precisava atravessar por entre traves improvisadas com galhos, tijolos ou até mesmo chinelos de dedo, sinalizando que, se a bola passasse por ali, era ponto, era gol marcado. No melhor estilo “5 vira, 10 acaba”, foi ali, entre gols sofridos e regras improváveis, que aprendi uma das lições mais valiosas da vida — e nem percebi na época.

Era o começo dos anos 90, e o São Paulo, bicampeão mundial sob o comando de Telê Santana, brilhava com Raí nos gramados. Eu, um moleque de 14 anos com o coração tricolor, mesmo que sem ídolos, sonhava com a bola, não com ser estrela. Com o tempo, fui deixando essas paixões de lado, como tantas outras da juventude. O que ficou mesmo foram os aprendizados.

Em um dia qualquer daqueles — não sei ao certo os detalhes, pois a memória já anda meio embaçada, assim como a visão começando a turvar, ou como minha mãe diz às vezes: “o braço tá ficando curto” — nossa turma foi convocada para jogar o campeonato de várzea da cidade. A gente representaria a Bicicletaria Cristo Rei, nome que batizava tanto a rua onde morávamos quanto o time que formamos. O dono, cujo nome não lembro, decidiu montar um esquadrão improvável de garotos que, todos sabiam, não passaria da fase de grupos. O objetivo dele? Divulgar a loja, claro.

Mas, pra nós, o que importava era o presente que ele ofereceu: um jogo de camisas novinhas, algo tão raro na nossa cidade que nos fez sentir como se fôssemos contratados pelo São Paulo de Raí (embora alguns dos meus colegas dissessem que era pelo Corinthians do Neto).

Não tínhamos chuteiras reluzentes — o acesso a elas não era tão fácil como hoje. Calçávamos tênis de marcas variadas, e o auge era o Ki-Chute, aquele preto com cravos de borracha, trazido por sacoleiros destemidos do Paraguai. O dono da bicicletaria nos patrocinou em tudo: pagou a inscrição do time, as camisas, e, numa conversa franca, disse:
“Vocês não têm obrigação de ganhar, são apenas crianças jogando contra adultos.”

E impôs uma única regra, em troca de tudo aquilo:
“Não pode cometer nenhuma falta e não pode reclamar de nenhuma falta.”

Vestidos com as camisas da Cristo Rei, entramos em campo com o peito inflado, mas com aquela regra que parecia absurda, ditada pelo dono da bicicletaria.

Ele não explicava muito, mas, pensando hoje, acho que não era só sobre jogar limpo. Talvez, com sua fé e a experiência de quem já viu o mundo, ele quisesse nos proteger de confusões com adversários, especialmente adultos, que poderiam revidar com força desproporcional. Ou quem sabe, sem perceber, ele estivesse nos ensinando o “dar a outra face” que aprendeu na igreja. Intencional ou não, a lição pegou.

Foram três jogos, três goleadas: 8 a 0, 4 a 0, 6 a 0. Cada gol sofrido doía como uma pedrada, mas o que testava mesmo nossa alma de adolescentes, com hormônios fervendo, era segurar a raiva. Os adversários vinham com carrinhos criminosos, divididas que deixavam marcas roxas nas canelas, e nós, obedecendo à regra, tínhamos que levantar, engolir o grito e dizer:
“Não é nada, segue o jogo.”

Isso enlouquecia os outros times. Eles esperavam briga, xingamentos, um revide que fosse — mas que nunca vinha. E nós, no sufoco das derrotas e da humilhação diante da cidade toda, aprendíamos a não fazer falta em ninguém — nem no jogo, nem na vida.

Vivemos num tempo em que o mundo parece pregar um eterno “nós contra eles”, onde cada discussão vira guerra e cada diferença é um motivo pra revidar. E aí eu penso naquele time de crianças, da Cristo Rei. Não sei se o dono da bicicletaria queria nos ensinar algo, mas, querendo ou não, ele nos deu uma lição que carrego até hoje.

Na vida, como no campo da Praça da Fogueira, não precisamos responder à violência com violência, nem à dor com rancor. Aprendi a não cometer faltas — a não fazer mal a ninguém, mesmo quando estou no meu próprio sufoco. E, quando a vida me dá uma rasteira, tento não reclamar, não apontar culpados, mas levantar e dizer:
“Não é nada, segue o jogo.”

Aquelas camisas desbotaram, o campo virou memória, e a Bicicletaria Cristo Rei acho que nem existe mais. Mas, em mim, ficou o menino de 14 anos, correndo na terra com um Ki-Chute nos pés, aprendendo que a vida não é uma dividida a ser vencida, mas um jogo a ser jogado com dignidade.

Porque, ao contrário do que o nosso tempo insiste em gritar, a vida não precisa ser um eterno “nós contra eles”. Às vezes, é só sobre jogar limpo, mesmo quando o placar não está a nosso favor.

 
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Bruno Andrade tem orgulho de ser caipira três vezes: paulista de nascimento, sul-mato-grossense de criação e mineiro de coração. Gosta de guardar histórias que a vida vai escrevendo devagar. Acredita que fé, memória e simplicidade ainda têm muito a ensinar — mesmo quando o placar não está a nosso favor.

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