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Preciso te contar uma história Domingo, 24 de Agosto de 2025, 13:47 - A | A

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Coluna Preciso te contar uma história

“O Caso Maximillian Sheldon”*

Por Rodrigo Andrade

Coluna Preciso te contar uma história
Artigo de responsabilidade do autor

* Inspirado na canção “Maximillian Sheldon” da banda Ultraje a Rigor.

IA, prompt por Deurico

ColunaPrecisoTeContarUmaHistoria

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Chovia grosso sobre o Amambaí quando ela entrou no meu escritório. Vestia um vestido vermelho que não era para a ocasião, mas combinava com o sangue que viria depois. Cabelo preso num coque frouxo, batom borrado e olhos de quem já tinha confessado tudo pra almofada antes de procurar a polícia. Ou melhor, antes de procurar mim.

— Seu nome? — perguntei, sem tirar os pés da mesa nem a cachaça do copo.

— Elisa. Elisa Becker. E eu... preciso de ajuda com um homem.

Suspirei. Sempre é um homem.

Ela sentou, cruzou as pernas e me entregou um maço de fotos. Em todas, ele: Maximillian Sheldon, o detetive mais famoso — e odiado — da cidade. Ar arrogante, terno riscado, olhar de juiz do Supremo. Parecia saído de uma propaganda de uísque importado. Mas quem o conhecia de perto sabia que ele gostava mesmo era de boteco pé-sujo, interrogatório na pressão e um certo prazer em apertar demais as algemas.

— Ele me investiga. Persegue. Sabe onde eu moro, com quem ando, o que como. Disse que sou suspeita de um crime que nem aconteceu.

Olhei nos olhos dela. Tinha coisa ali. Uma mistura de medo e desejo. Coisa de novela das onze. Mas não era ficção. Ainda não.

Maximillian Sheldon era conhecido no meio. Dizia-se que não errava um palpite. Que acordava às cinco pra correr na Lagoa e lia os autos como quem lê poesia. Mas também tinha fama de inquisidor moderno. Que invadia casas com mandado verbal e torturava com palavras afiadas.

Já tínhamos nos esbarrado no passado. Ele no balcão da justiça, eu no submundo dos erros humanos. Ele de farda moralista, eu de paletó gasto e consciência manchada.

— Você quer que eu o investigue? — perguntei.

— Quero que... ele pare. — A pausa foi longa o suficiente pra um samba inteiro. — Ou que desapareça.

Os dias seguintes foram mergulho em esgoto. Sheldon morava num loft em Itatiaia, decorado com rigidez escandinava e cheiro de whisky caro. Tinha um dossiê sobre metade da cidade: juízes, pastores, traficantes e donas de casa. Todos sob suspeita. Todos sob controle.

Descobri que ele havia colocado escuta em Elisa. Que vasculhava seus e-mails. Que mandava mensagens anônimas com versos de Bukowski e ameaças veladas. Era obsessão. Pura e doentia.

Mas nada que eu pudesse levar à polícia. Sheldon era a polícia — ou pior, era a ideia incorruptível da polícia em um país onde a justiça de verdade mora num beco mal iluminado.

Voltei ao Amambaí. Chovia de novo. Elisa me esperava no mesmo vestido, agora com um olhar mais frio. Algo tinha mudado. Ela me serviu café e falou sem rodeios:

— Ele não vai parar. Acha que está me salvando de mim mesma. Como se eu fosse uma equação que ele precisa resolver. Eu sou só uma mulher. E ele é um homem que não sabe lidar com o que sente.

— Você quer que eu o mate?

Ela não respondeu. Só deslizou sobre a mesa um envelope com dez notas de quinhentos. Não era muito. Mas era mais do que a minha consciência valia naquela noite.

Encontrei Sheldon no Bar do Gomes. Ele bebia sozinho, rabiscando algo num guardanapo.

— Investigando por conta própria, Sheldon?

Ele não se assustou. Apenas ergueu os olhos e sorriu daquele jeito que só gente que nunca se diverte sorri.

— Você. Sempre nas sombras, sempre atrás do que não pode provar.

— E você, sempre tentando ser perfeito. Mas tá mais pra psicopata de terno.

Ele riu. Um riso seco, quase técnico. O tipo de riso que precede socos ou tiros.

— Vai me acusar de quê?

— De ser um problema. E de ser muito suspeito.

O silêncio se fez. Até que ele cochichou:

— Eu sou tudo o que você teme ser. O lado de você que ainda acredita que pode controlar o mundo.

Foi quando eu percebi: Maximillian Sheldon era eu.

Ou melhor, uma parte de mim. Aquela que um dia vestiu a farda, acreditou na ordem, quis salvar gente com a força da lei. Mas que, sufocado pela burocracia e pelas traições, despiu o uniforme e virou detetive particular. Sheldon ficou dentro. Cresceu. Virou sombra. Virou delírio.

— Eu vou matar Maximillian Sheldon — sussurrei. Não pra ele. Mas pra mim.

Peguei a arma. Apontada ao espelho atrás do bar. E disparei.

O espelho estilhaçou. Sheldon sumiu.

O bar continuou, os bêbados nem notaram. Apenas Elisa, do outro lado da rua, sorriu. Não por alegria. Mas por alívio. Ela sabia que o maior dos monstros é aquele que a gente carrega no peito.

Desde aquela noite, nunca mais fui o mesmo.

Mas também... nunca mais fui Maximillian Sheldon.

 

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Rodrigo Andrade é doutor em Literatura Brasileira pela UFMS e professor na rede pública de educação do MS, mas prefere ser chamado de suspeito habitual da ficção. Viciado em filmes e livros baratos (ou caros demais), escreve como quem interroga o próprio espelho numa noite de chuva. Alguns dizem que é crítico; ele insiste que só é culpado de ler demais. Perigoso mas só no papel.

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