Para começar, ative o som:
“Conto inspirado no conto que foi inspirado na música Maximillian Sheldon, da banda Ultraje a Rigor.”
Ah, a chuva no Amambaí. Sempre chovendo nesses contos noir, né? Como se o céu das cidades desses contos policiais tivessem um contrato vitalício com o departamento de efeitos especiais para tornar tudo mais dramático. Eu, Elisa Becker – loira fatal, vestido vermelho colado no corpo como uma segunda pele molhada – estava ali, parada na porta do escritório daquele detetive, olhando para a placa enferrujada que dizia "Maximillian Sheldon – Investigador Particular". Relutante? Ah, você nem imagina. Meu coque frouxo já estava virando uma bagunça aquática, o batom borrado parecia ter sido aplicado por um pintor abstrato bêbado, e meus saltos afundavam na poça como se o chão quisesse me engolir. "Por que eu tô fazendo isso?", pensei, enquanto o vento uivava como um lobo solitário em filme B. Porque, claro, todo detetive noir precisa de uma cliente misteriosa para entrar na trama. Clichê número um: check.
Empurrei a porta com o ombro, porque, vamos combinar né, bater seria muito civilizado para o gênero. O escritório era o de sempre: mesa bagunçada, pés em cima dela, um copo de cachaça que cheirava a arrependimento matinal. Ele – Maximillian Sheldon, o cara com nome de vilão de quadrinhos – nem se mexeu. Olhos fixos em mim, como se eu fosse o próximo caso a ser arquivado.
— "Seu nome?", ele perguntou, com aquela voz rouca de quem fuma dois maços por dia e lê Dashiell Hammett no café da manhã.
— "Elisa. Elisa Becker. E eu... preciso de ajuda com um homem."
Ah, que originalidade, Elisa. Sempre um homem, né? Sentei, cruzei as pernas – porque toda femme fatale faz isso para adicionar tensão sexual ao ar enfumaçado – e entreguei o maço de fotos. Todas dele mesmo, Maximillian Sheldon, posando com seu terno riscado, olhar arrogante, como se fosse o rei do noir.
— "Ele me investiga. Persegue. Sabe onde moro, com quem ando, o que como. Disse que sou suspeita de um crime que nem aconteceu."
Mentira? Talvez. Mas no noir, a verdade é como a chuva: cai quando convém.
Ele suspirou, clássico. Eu via nos olhos dele uma mistura de tédio e curiosidade, como se eu fosse o enredo de uma novela das onze que ele já sabia o final.
—“Você quer que eu o investigue?” Pergunta óbvia.
— “Quero que … ele pare. Ou … Pausa dramática. Tempo para um samba imaginário tocar ao fundo, enquanto a chuva batia na janela como um baterista entediado … que desapareça.”
Os dias seguintes foram um mergulho em esgoto – dele, ou meu? Ele fuçava o loft no Itatiaia, com decoração escandinava que parecia saída de catálogo da Tok Stok para detetives depressivos. Tinha dossiês sobre todo mundo: juízes, pastores, traficantes. Parecia que tinha escutas em mim, meus e-mails vasculhados, mensagens com versos de Bukowski e ameaças veladas. Obsessão pura. Doentia. E eu, esperando no apartamento, servindo café frio e pensando: “Esse vestido vermelho de novo? Sério, Elisa, varia o figurino, isso tá virando uniforme de clichê.”
Voltei ao Amambaí, chuva de novo – porque, óbvio, o clima não muda nesses contos. Ele entrou, eu servi café, falei sem rodeios:
— “Ele não vai parar. Acha que está me salvando de mim mesma. Como se eu fosse uma equação que ele precisa resolver. Eu sou só uma mulher. E ele é um homem que não sabe lidar com o que sente.”
Com um humor cínico: eu ali, jogando o envelope com dez notas de quinhentos na mesa.
— “Você quer que eu o mate?” Ele perguntou.
Eu não respondi. Só pensei: “Que roteiro previsível”.
Próximo passo: encontro no bar."
E lá fomos nós para o Bar do Gomes. Ele bebendo sozinho, rabiscando guardanapo como se fosse um poeta maldito.
A conversa:
— “Investigando por conta própria, Sheldon?”
Ele ri seco. - “Sempre nas sombras.”
Começou uma troca de farpas, como em todo filme noir que se preze.
— “Eu sou tudo o que você teme ser.”
E bum: a revelação. Maximillian Sheldon era ... eu? Não, espera. Eu sou Elisa Becker, a loira perseguida. Mas quando ele apontou a arma para o espelho e atirou, os cacos voaram, e algo estalou na minha cabeça como um flash de câmera velha.
Enquanto o espelho estilhaçava, levando o reflexo arrogante dele, eu – do outro lado da rua, sorrindo por alívio – senti um vazio. As memórias se embaralharam: o vestido vermelho era meu ou dele? As fotos, a perseguição – tudo parte de uma mente fragmentada. Elisa Becker não era a vítima; era uma das múltiplas personalidades de Maximillian Sheldon, a faceta vulnerável, a mulher que ele inventava para lidar com sua própria fragilidade. O tiro não matou só o inquisidor; revelou que eu era a projeção dele, a loira que existia para equilibrar o caos interno.
— "Eu sou... ele?", murmurei, atravessando a rua em direção aos estilhaços, pisando nos pedaços da ilusão. O bar continuou, os bêbados nem notaram – clichê final. Desde aquela noite, a cidade nunca mais viu Maximillian Sheldon inteiro. Nem Elisa Becker. Apenas um detetive solitário, com cicatrizes invisíveis e um senso de humor amargo, rindo dos clichês que o prenderam.
Porque, no fim, no noir, o maior mistério é sempre você mesmo.
E eu? Bem, eu ainda uso vestido vermelho – mas agora, só pra rir da chuva.
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“O Caso Maximillian Sheldon”*