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Preciso te contar uma história Domingo, 21 de Setembro de 2025, 13:43 - A | A

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Coluna Preciso te contar uma história

Geografia de Papel, Mapas de Imaginação

Por Rodrigo Andrade

Da coluna Preciso te contar uma história
Artigo de responsabilidade do autor

Viagens que não cabem no passaporte, mas transbordam das páginas.

IA, prompt por Deurico

ColunaPrecisoTeContarUmaHistoria

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Há quem jure que para conhecer o mundo é preciso carimbar o passaporte. Eu, desconfiado que sou, prefiro os carimbos invisíveis que a literatura deixa na gente. Viajar pode ser encantador, claro, mas só a leitura tem a delicadeza de nos mostrar não apenas a paisagem, e sim as contradições que ela esconde. Paris é uma coisa vista da sacada de um hotel caro; outra bem diferente quando se entra nos esgotos com Victor Hugo.

Foi exatamente em “Os Miseráveis” que reencontrei a França de um século XIX que ainda soluçava a Revolução. Nas barricadas, Hugo mostra que Paris não é apenas um cartão-postal: é uma topografia moral, feita de desigualdade, justiça e redenção. Cada rua é uma escolha ética, cada esquina esconde um dilema humano.

Daí pulei para a madrugada de Haruki Murakami em “Após o Anoitecer”. Tóquio não aparece em monumentos ou cartões, mas em cafés abertos de madrugada, hotéis anônimos e letreiros de neon. Uma geografia sem mapas, feita de insônia e mistério. Murakami não nos leva a um Japão turístico, e sim a um Japão metafísico, onde a cidade pulsa como um corpo inquieto — e, convenhamos, nenhum GPS seria capaz de localizar isso.

Segui viagem para o interior dos Estados Unidos com Mark Twain, que me apresentou o Mississippi como quem apresenta um velho amigo. Em “Tom Sawyer” e “Huckleberry Finn”, o rio não é apenas cenário: é estrada, fronteira e refúgio. O Missouri e o Illinois aparecem mais vivos ali do que em qualquer atlas, porque Twain sabia que a geografia não está só nos mapas, mas nos meninos descalços, na lama, no racismo entranhado e na eterna busca por liberdade.

A travessia continuou até a Rússia do século XIX, pela mão desconcertante de Dostoiévski em “Os Irmãos Karamázov”. Aqui, a paisagem não se limita a aldeias geladas e mosteiros ortodoxos. A verdadeira geografia é a do espírito humano: tortuosa, conflituosa, tão cheia de abismos quanto a estepe. O romance nos mostra uma Rússia que é, ao mesmo tempo, território físico e labirinto filosófico — lugar onde cada discussão de taverna pode ressoar como uma catedral moral.

E já que os mapas literários não obedecem fronteiras, fui parar no Caribe de Gabriel García Márquez, em “Doze Contos Peregrinos”. Ali, o realismo mágico não é só estilo: é clima. O Caribe aparece como uma terra de sol inclemente e memórias sobrenaturais, onde santos convivem com fantasmas e viajantes carregam consigo um pedaço de mares tropicais mesmo quando estão em hospitais europeus. Márquez nos mostra que a geografia caribenha é inseparável da imaginação: um espaço onde realidade e mito caminham lado a lado, como vizinhos de rua.

Para encerrar — ou talvez recomeçar — voltei ao Brasil com Socorro Acioli, em “Oração para Desaparecer”. O território aqui não é fixo: é um bordado entre Brasil e Portugal, entre procissões e encantarias, entre santos e entidades. Um mapa de sincretismos, onde cada ponto cardeal é uma crença, e cada fronteira, uma invenção.

E assim percebo que a literatura é a mais generosa das geografias: não mede distâncias, mas intensidades. Não nos dá apenas o relevo dos lugares, mas o relevo das pessoas. Ler é descobrir que Paris também fede, que Tóquio também sonha, que o Mississippi também escraviza, que a Rússia também enlouquece, que o Caribe também inventa, que o Brasil também reza e desaparece.

Viajar com livros é aceitar que os mapas oficiais mentem por omissão. Só a literatura tem a ousadia de revelar a geografia secreta — essa que não cabe nos guias turísticos, mas que cabe inteira dentro de uma frase bem escrita. E talvez seja por isso que sigo lendo: não para riscar países na lista, mas para descobrir que o mundo é maior, mais estranho e mais belo do que qualquer fronteira.

 

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Rodrigo Andrade é Doutor em Literatura Brasileira pela UFMS e professor da rede pública de ensino de Mato Grosso do Sul. Entre salas de aula e páginas de romance, dedica-se a explorar como a literatura recria territórios invisíveis, revelando geografias que não aparecem nos mapas, mas moldam a experiência humana.

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