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Opinião Domingo, 06 de Julho de 2025, 13:23 - A | A

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Opinião

Ele Pode? (Um Texto Sobre APLV e Outras Restrições Alimentares)

Por Wanderson R. Monteiro*

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Outro dia, eu estava em uma festa de casamento e, quando fui dar algo de comer a meu filho, que estava brincando com outra criança, instintivamente eu já ia oferecer ao outro menino aquilo que eu iria dar ao meu filho. Então, antes mesmo de eu abrir a boca, fui tomado por um pensamento que já se tornou algo intrínseco em mim com o passar dos últimos dois anos. Esse pensamento era formado por uma única frase, mas que carrega grande peso e responsabilidade. Dessa forma, naquele milésimo de segundo antes de eu abrir a boca oferecendo à outra criança o que eu iria dar a meu filho, virei minha cabeça, buscando olhar ao redor, procurando a mãe ou o pai da criança. Ao ver a mãe dela, fiz a pergunta que havia tomado toda a minha preocupação naquele instante, que é composta somente de duas palavras: “Ele pode?”, enquanto eu lhe mostrava o alimento que iria dar a meu filho e oferecer ao dela.

Acredito que muitos de nós aprendemos, ao longo de nossa vida, a enxergar o ato de compartilhar comida com uma criança como algo simples e natural. Um gesto que, à primeira vista, mostra cuidado e preocupação. Quando vemos uma criança nos observando comer, é quase automático: estendemos a mão, partilhamos o que temos, sorrimos, perguntando se ela quer um pedaço ou um pouco daquilo que estamos comendo. Esse é um reflexo de algo que aprendemos desde pequenos, passado de geração em geração, como um ensinamento silencioso, mas profundamente enraizado em nossos costumes.

Dessa forma, quando uma criança pequena vê que estamos comendo alguma coisa, ou quando vamos comer algo perto de alguma dessas crianças, é comum que ofereçamos ou que até demos algo para essa criança. Esse ensinamento, passado de geração em geração, se tornou algo quase instintivo. É algo comum, normal, natural. Oferecemos e compartilhamos com a criança aquilo que estamos comendo, sem nos preocuparmos se isso poderá ter algum tipo de consequência. Fazemos aquilo que aprendemos ser o certo.

Isso era natural para mim também, até que tive um filho que é alérgico à proteína do leite de vaca (APLV). Depois disso, descobri que, por mais boa vontade que tenhamos em dar algo para alguma criança, nosso ato pode ser extremamente prejudicial, pois não sabemos se tal criança pode vir a ter alguma restrição alimentar, podendo ter uma reação alérgica ou algum tipo de intolerância após ingerir o que estamos lhe oferecendo. Após a descoberta da alergia de meu filho, eu passei a ter medo da boa vontade das pessoas e aprendi algo importante também, pois, agora, toda vez que penso em dar ou compartilhar algo com alguma criança, eu pergunto à mãe ou ao pai: "Ele pode?" — na intenção de saber se ele pode ou não comer ou beber daquilo que estou oferecendo.

Por ter alergia à proteína do leite de vaca (APLV), meu filho não pode ter nenhum contato com qualquer alimento que contenha leite. Ele não precisa comer: a reação alérgica dele se manifesta simplesmente se ele tocar em algo que contenha leite. Isso me fez enxergar uma realidade que eu ainda não conhecia, fazendo-me preocupar com aqueles que, assim como ele, possam também ter algum tipo de reação alérgica a algum tipo de alimento, fazendo-me acordar, também, para a existência de severas restrições alimentares. Ouvimos muito sobre essas coisas, mas só compreendemos a seriedade quando estamos inseridos dentro dessa realidade, dia após dia.

Dessa forma, descobrir a alergia do meu filho não apenas mudou nossa rotina alimentar, mas também mudou toda a minha percepção da realidade. Percebi quantas outras crianças vivem sob severas restrições alimentares, enfrentando um mundo que ainda trata com desdém as alergias e intolerâncias. Quantas vezes rimos quando alguém diz que não pode comer algo, achando que é “frescura” ou “modismo”? Quantas vezes subestimamos a dor do outro por desconhecê-la?

É fácil julgar o que não vivemos. É fácil minimizar aquilo que não nos afeta diretamente. Mas, quando a realidade bate à porta, quando ela se instala em nossa casa e passa a fazer parte da nossa rotina, somos obrigados a repensar tudo. E foi assim que eu aprendi: não é apenas sobre o meu filho. É sobre todas as crianças. É sobre a responsabilidade que temos com o outro, mesmo quando não o conhecemos. É ter a consciência de que um gesto carregado de boas intenções pode trazer, como consequência, grandes dificuldades quando não conhecemos a realidade de quem está diante de nós.

Aprendi que viver com uma criança que possui APLV não é apenas uma adaptação alimentar. É uma completa — e complexa — mudança de mentalidade. É viver em alerta constante, é buscar ensinar os outros a respeitarem limites que eles não compreendem, que não fazem parte de sua realidade.

Dessa forma, quando vou a alguma festinha de criança ou mesmo a uma simples visita à casa de alguém, já sei que terei que explicar, prevenir, observar. E não por desconfiança das pessoas, mas pela consciência de que, muitas vezes, o que falta não é boa vontade — é o conhecimento da realidade na qual meu filho está inserido. Assim como eu não sabia dessa realidade antes do nascimento do meu filho, tantos outros também não sabem. E é por isso que a pergunta "Ele pode?" passou a ser tão essencial.

Meu filho me ensinou algo que nenhuma teoria ou livro poderia me ensinar. Ele me ensinou que o cuidado verdadeiro vai além da intenção: ele exige atenção, humildade e disposição para aprender com a dor do outro. Ele me ensinou que o amor se revela nas pequenas atitudes. E, acima de tudo, ele me ensinou que perguntar não ofende — perguntar pode salvar.

Portanto, se você estiver diante de uma criança e pensar em oferecer algo, lembre-se dessa pergunta que carrega em si muito mais do que parece: "Ele pode?" Essa simples frase pode ser a diferença entre o carinho e o risco, entre o cuidado e a ignorância, entre a vida comum e um dia de sofrimento. E, se queremos construir uma sociedade mais humana, é por essas pequenas escolhas que devemos começar, entendendo que um simples gesto pode trazer trágicas consequências.


*Wanderson R. Monteiro
Autor de São Sebastião do Anta – MG.
Dr. Honoris Causa em Literatura e Dr. Honoris Causa em Jornalismo.
Bacharel em Teologia, graduando em Pedagogia.
Acadêmico correspondente da FEBACLA. Acadêmico fundador da AHBLA. Acadêmico imortal da AINTE.
Autor dos livros Cosmovisão em Crise: A Importância do Conhecimento Teológico e Filosófico Para o Líder Cristão na Pós-Modernidade, Crônicas de Uma Sociedade em Crise, Atormentai os Meus Filhos, e da série Meditações de Um Lavrador, composta por 7 livros.
Autor de 10 livros.
Vencedor de 4 prêmios literários. Coautor de 15 livros e 4 revistas.
(São Sebastião do Anta – MG)

 

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