Campo Grande 00:00:00 Sábado, 27 de Julho de 2024


Você e Maria Clara Segunda-feira, 06 de Julho de 2009, 10:40 - A | A

Segunda-feira, 06 de Julho de 2009, 10h:40 - A | A

Recasamento: AIDS e violência, a família sobreviverá?

Maria Clara L Machão

Recasamento: AIDS e violência, a família sobreviverá?

Duas pessoas, um homem e uma mulher, vão um dia ao cartório para serem unidos em matrimônio pelo Juiz de Paz. O amor e a reprodução cuidam do resto. Deste modo, pessoas viram pais e bebês nascem. Nasce aqui uma família.

Esta é a descrição mais conhecida do primeiro casamento, dos primeiro filhos, da primeira família. Cada vez mais esta é a cena que se repete, ou se espera que se repita, no segundo casamento, no terceiro casamento, todas as vezes que as pessoas fizerem uma tentativa otimista de constituir uma união saudável.

O amor por uma criança desempenha papel muito importante na definição deste relacionamento inimitável, que é a pedra angular de nossa vida social, o inter-relacionamento existente entre a criança e seus pais. Este amor existe muito antes do nascimento da criança e continua a corresponder às expectativas a partir do momento em que a criança nasce ou passa a existir numa família, base de um casamento ou de um recasamento.

Inicia-se assim uma linda história de amor, que às vezes se torna uma triste história, confundindo amor, desejos, sonhos, fantasias com decepções, raiva, angústia, medo e solidão e a inevitável separação do casal. Pessoas estas que costumam dizer: “Casar nunca mais”, “Confiar jamais”, “Amor não existe”, “Dividir a cama com alguém é tarefa muito difícil”. Após passar o “trauma” da separação, as pessoas começam a novamente a buscar novos encontros, novas parcerias, novos desejos e um novo amor, surgindo, assim, o recasamento. Ele vem agora com pessoas que têm em suas bagagens novas e velhas experiências, mas novamente com a vontade de acertar. Aí, elas costumam dizer: “Agora é pra valer”, “Hoje estou mais madura, sei o que espero de um novo casamento”, “Casei novamente porque não sou homem de viver sozinho”, “Estou casada novamente para dividir minhas alegrias e minhas tristezas”, “Hoje sou mais tolerante”, “O outro casamento foi um erro e este é um acerto”. Enfim, o ser humano sempre está disposto a argumentar quando ele toma novas posições e definições emocionais em sua vida.

O recasamento traz inúmeras expectativas e pelo menos um histórico malsucedido. O clássico “até que a morte nos separe” aos poucos está sendo trocado, sem cerimônia, por “enquanto nosso projetos combinarem”, mesmo entre aqueles que casam-se para sempre. Atualizam-se os conceitos, mas as expectativas de dar certo são sempre as mesmas, em todos os casamentos.

Além do pesado investimento emocional, hoje deparamos com uma triste realidade: a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), doença de nosso século, que nos traz novamente a reflexão e o freio da liberdade sexual, tão conquistada na década de 60, quando se pregava amor, sexo livre, drogas e rock and roll. Aflora, a partir da AIDS, uma nova postura sexual, carregada de medos e preconceitos.

A AIDS entra no recasamento através das experiências sexuais no período de solteirice, enquanto escolhe-se um novo parceiro. Entra também quando um casamento é desfeito porque há casos extraconjugais. Além de provocar separações, este é um comportamento de risco levado para o recasamento.

Esta é uma doença do nosso tempos, um limitador nas escolhas sexuais e vêm com ela a obrigatoriedade de se usar camisinha como método preventivo, fundamental no bloqueio desta doença que ainda hoje não tem cura, e que acomete principalmente a população jovem e ativa sexualmente.

É o desejo e a liberdade nos colocando limites silenciosos. Uma vez, um paciente em estágio terminal de AIDS me disse: “Eu não me conformo de estar morrendo por causa do meu próprio desejo. Como pude me transformar no que sou hoje e estar morrendo por ter vivido grande emoções sexuais?” Temos ainda questões mais fortes, como a deste depoimento: “Hoje recebi um duplo golpe em minha vida. Meu marido foi internado gravemente enfermo, com diagnóstico de AIDS, e ainda por cima me confessou que era gay. Sinto um misto de dó e raiva, e ainda tive que submeter a mim e a minha filha ao teste de AIDS. Graças a Deus estamos livres. E agora? Terei que cuidar dele até o fim? E como eu fico nesta história?” Histórias como estas estão cada vez mais freqüentes nas famílias, causando uma sensação de impotência e fracasso diante do casamento idealizado.

A AIDS em si mesma é uma violência, é o símbolo da doença como o é o câncer. O grande problema é que as pessoas colocam o símbolo de lado, continuam vivendo sua vida e negando a doença, violentando-se e agredindo outras pessoas, seja ao expor parceiros ao risco, seja ao sucumbir pela doença na frente das pessoas que lhe querem bem.

Outras violências mais evitáveis e menos sutis, no entanto, são cultivadas pelas pessoas dentro de sua própria casa, dentro do espaço que escolheu para viver bem. Por inúmeras razões, as pessoas punem-se violentamente e punem ao mais próximos com agressões que tem raízes lá atrás, em relações doentes da família em que foi gestada. Muitos casamentos são desfeitos pela violência, que é levada para o recasamento.

O estabelecimento de vínculo afetivo entre os casais sofre influências das histórias de vida e das características psicológicas de cada um dos parceiros, e esta diferença faz com que pessoa se submetam de forma passiva a vários tipos de violência, como, por exemplo, uma paciente que me disse no consultório: “Quando morava com minha mãe e meus irmãos, eles me batiam por qualquer motivo. Casei porque mais sofrer e meu marido me bate também, na frente da minha filha, e eu não sei mais o que fazer. Ele me bate porque não tenho mais orgasmo. Eu tenho raiva dele, mas não tenho dinheiro para sair de casa, pois ele é quem sustenta a mim e a minha filha.” Em outra passagem, um jovem de 16 anos disse: “Hoje estou feliz porque minha mãe vai se separar do meu pai, pois eu não suporto mais vê-la ser espancada por ele. Até que enfim ela tomou uma atitude”.

Na verdade, o ser humano tem a tendência de reproduzir histórias em sua vida. É comum, no consultório, pessoas que sofreram violência na família quando criança e adolescente, fazendo uniões em que são geradas muitas violências e esta reprodução de histórias negativas em suas vidas. Freqüentemente as pessoas não são conscientes dessa correlação. Através da psicoterapia, ela consegue estabelecer novos encontros em sua vida de uma forma mais saudável.

O mundo, nosso macrouniverso, é uma extensão de nosso mundo interno, não mais que uma extensão da família e do comportamento dentro de casa, o que nos faz pensar um pouco sobre os principais problemas interiores do nosso tempo.

Ao nos aprofundarmos nos motivos de perturbações das pessoas, tais como ameaça de guerra, violência urbana e doméstica, instabilidade econômica, percebe-se que os sintomas descritos, em nossa época, causam nas pessoas muitas infelicidades, incapacidade para tomar decisões referentes ao casamento, que encontra-se deteriorado, causando assim desespero generalizado e falta de objetivo. Como em alguns depoimentos: “Meu marido me escreveu uma carta dizendo que não me ama mais, que não tem mais desejo por mim. Mas eu já disse que não vou aceitar isso, que casei para sempre e não vou me separar jamais”. Isso nos demonstra como é difícil olhar para nós mesmos e dizer acabou, tenho que partir para outra condição de vida, a de descasado(a), ou seja, retornar à solidão. A solidão é uma ameaça não violenta e penosa para muitos que não possuem a concepção dos valores positivos do isolamento e até se assustam com a possibilidade de ficarem sós. Muitos sofrem do “medo da solidão” e, assim, absolutamente não se encontram.

A sensação de vazio e a solidão andam juntas. Quando alguém fala do rompimento de uma relação amorosa, manifesta tristeza ou humilhação pela conquista perdida, diz que se sente “vazio”. A perda deixa um imenso vácuo. O homem tem dentro de si um grande potencial e esforço para se ver livre da solidão. O homem é um mamífero bissocial, que depende dos demais seres humanos, como pai e mãe, para sua segurança durante a longa infância, e só adquire autoconsciência, base para sua capacidade para orientar-se na vida, graça a esses primeiros relacionamentos. Isto nos indica que o homem precisa relacionar-se com outras pessoas a fim de orientar-se e se completar.

Outra razão importante emerge do valor que nossa sociedade dá à aceitação social. Esta é a melhor maneira de afastar a ansiedade e conservar símbolos de prestígio. Precisamos estar sempre provando que somos um “êxito social” pelo fato de nos procurarem, de nunca andarmos sós. Se a pessoa é estimada, isto é, socialmente aceita, acredita-se que raramente esteja só. Não se estimada é um fracasso. Hoje, acredita-se que, se a pessoa for estimada, o êxito nos negócios e o prestígio virão a seguir.

No reverso da solidão do homem moderno está seu grande temor de ficar só. Em nossa cultura, costuma-se dizer “você anda solitário”, um modo de admitir que não é bom estar só.

Eu e minha sombra
Ninguém a quem contar nossas penas...
Só eu e minha sombra
Tão tristes e sozinhos.

É com estas questões ainda mal resolvidas que as pessoas partem para um recasamento sem pensar honestamente o que trouxe a separação. É com os medos e as violências introspectadas dentro de si que elas se projetam para o mundo, procurando culpados pelos seus insucessos e suas angústias, fugindo desesperadamente da solidão, ao tempo em que ela deveria estar revendo sua capacidade de relacionar-se de forma satisfatória.

 

A família sobreviverá

Segundo Moreno, “Somos todos unidos pela responsabilidade. Não existem limites para a responsabilidade nem responsabilidade parcial. E a responsabilidade nos faz criadores do universo. Somos responsáveis por todas as coisas que acontecerão no futuro e por todas as coisas que aconteceram no passado, e mesmo que eu não tenha qualquer ajuda para fazer as coisas, para remover a razão de ser do sofrimento ou para fazer qualquer coisa, eu tenho agora, uma aliança operacional com o mundo interno. Todas as coisas pertencem a mim e Eu pertenço a todas as pessoas. A responsabilidade é o elo que nos une e que nos liga ao cosmos. A responsabilidade para com o futuro do mundo olha muito pouco para trás. Seu olhar está quase sempre voltado para frente.”

Pensar nas falas de Moreno nos leva a refletir positivamente sobre a família, acreditando que ela sobreviverá, sim, sempre, e cada vez mais forte, possibilitando que as pessoas vivam verdadeiros “encontros” no recasamento, controlando a AIDS através de informações, precauções e consciência, nos libertando da violência e partindo para uma vida de não-violência, de paz, já que o inconsciente coletivo de nossa geração clama por paz e por mais amor entre nossa sociedade.

Crescemos à medida que entendemos que estamos neste mundo para transformar, para deixar tudo um pouco melhor do que encontramos. Isto vale para todos nós, de forma pessoal e profissional, responsáveis que somos pela nossa existência. Portanto, se depender de nós, psicodramatistas, que trabalhamos por um mundo melhor, mais humano, mais justo, mais criativo e espontâneo, a nossa bandeira é de que a família sobreviverá.

J. L. MORENO

Eu sou o Pai
Eu sou o Pai do meu filho.
Eu sou o Pai
da minha mãe e do meu pai.
Eu sou o Pai
do meu avô e do meu bisavô.
Eu sou o Pai
do meu irmão e da minha irmã.
Eu sou o Pai
do meu neto e do meu bisneto.

Eu sou o Pai do céu
que vai sobre a tua cabeça
e da terra que dorme debaixo dos teus pés.
Eu sou o Pai dos relâmpagos
que se lançam das nuvens
e do arco-íris
que paira sobre as casas.

Eu sou o Pai dos passarinhos
que voa entre as árvores
e das bestas que correm
no coração da floresta.

Eu sou o Pai das montanhas
que se erguem para o céu
e das flores que dançam nos prados.
Eu sou o Pai da tua língua
e dos teus olhos,
dos teus seios e dos teus pés.
Eu sou o Pai do pó
de onde tu vens
e do silêncio em que te escondes.
 

Comente esta notícia


Reportagem Especial LEIA MAIS