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Reportagem Especial Segunda-feira, 01 de Fevereiro de 2010, 09:23 - A | A

Segunda-feira, 01 de Fevereiro de 2010, 09h:23 - A | A

São Julião: de abrigo para isolados da sociedade a referência de tratamento na América Latina

Nadia Nadalon-estagiária - Capital News

O tratamento era o isolamento e, para isso, famílias eram separadas e os doentes abandonados a uma sorte e cura que ainda não existiam. Para tentar erradicar a doença no País, o então presidente da República Getúlio Vargas, fez cumprir a lei estadual n° 2.416, de 1929, que obrigava o isolamento compulsório, construindo em vários pontos do Brasil as redes de isolamento: os leprosários.

O governo fazia propagandas oficiais explicando que as “colônias” eram maravilhosas, com a intenção de persuadir os doentes de hanseníase, conhecida como lepra na época, à internação. No entanto, elas ficavam distantes das cidades, possuíam guardas, cemitérios e até cadeia para prender quem desobedecesse às regras.

Em Campo Grande, uma área de 240 hectares, onde atualmente a calma, o carinho e a tranquilidade podem ser sentidos, ainda guarda lembranças deste período da história. Inaugurado em agosto de 1941, o Hospital São Julião fazia parte das colônias inauguradas pelo governo com a promessa de cura para a doença. Em apenas quatro meses, o lugar abrigava 117 pacientes que vinham de todo o Centro-Oeste.

Com o passar dos anos e falta de interesse público em investir nos “leprosários” o prédio localizado no Bairro Nova Lima (região norte da Capital) se deteriorou. Até que em 1970, um grupo católico da Itália, liderado pela irmã Silvia, que já visitava os doentes, assumiu a diretoria executiva do hospital. A partir daí, segundo contou ao Capital News o administrador atual do estabelecimento, Amilton Alvarenga, os dias começaram a melhorar para os pacientes, com o tratamento a base do remédio Diaminodiphenil Sulfona (DDS).

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Administrador conta a história do hospital que há mais de 40 anos está nas mãos de uma missão da igreja católica
Foto: Deurico/Capital News

Junto com o tratamento, chegaram as equipes médicas e as reformas nos pavilhões, que antes abrigavam homens e mulheres juntos; com isso, acabaram as gangues que brigavam entre si. Uma das enfermeiras que veio da Itália e está lá desde 1975, conta que nas casas existentes no hospital moravam as famílias, mas os filhos sadios eram separados e levados aos preventórios e que os doentes nunca recebiam visitas.

“Existia o Parlátorio, que era um lugar que ficava perto da cozinha. Quando as pessoas vinham visitar, tinha um muro que dividia os doentes das visitas, com guardas, ficando cada um de um lado”, explica.

A enfermeira diz que o preconceito era algo muito forte, mas mesmo depois de muito tempo as pessoas ainda discriminam os doentes. Segundo ela, muitas vezes os pacientes não possuem nenhum sintoma aparente, mas se contam para o patrão que possuem a doença elas são despedidas do trabalho. "Tem pessoas que pensam que se vier aqui no São Julião vai pegar a lepra, mas não é assim", diz.

Vidas

Com o passar dos anos, muitos dos pacientes já curados voltaram para suas casas após o fim da Lei do Isolamento Compulsório, em 1962. Mas, muitos já não tinham famílias ou os laços tinham sido desatados pelo preconceito à doença e resolveram permanecer no hospital, em alojamentos oferecidos pela administração.

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Entre os moradores está Nair, de 86 anos, que há um ano passou a morar definitivamente no hospital. Sorridente e alegre, não parece ter passado por momentos dífíceis
Foto: Deurico/Capital News

Ainda hoje, vivem no São Julião 13 pacientes que viram todo este período de transição do hospital. O mais velho possui 104 anos e está lá desde a abertura do local, mas a sequela da doença atingiu a fala e, portanto, ele quase não conversa com as pessoas. Além dele, o hospital abriga pessoas como João Sapateiro que há 35 anos cuida da sapataria do local e é famoso por fazer sapatos com formas moldadas de acordo com o pé de cada doente.

Entre os moradores está Nair, de 86 anos, que há um ano passou a morar definitivamente no hospital. Sorridente e alegre, não parece  ter passado por momentos dífíceis durante a caminhada do tratamento. Ela conta que conheceu o São Julião quando tinha 30 anos de idade, e o lugar era bem diferente do encontrado hoje em dia. "Quando eu entrei aqui não tinha nada, hoje isso aqui é um paraíso”, afirma.

Ela conta que gosta de morar lá, até porque não tem ninguém para fazer companhia. “Não tenho marido e meu filho não gosta de mim porque sou do São Julião”, diz, se referindo ao preconceito pela doença.

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Dona Nair mostra o alojamento em que mora no Hospital São Julião
Foto: Deurico/Capital News

A enfermeira do hospital explica que desde 1986 a doença possui controle, basta tomar os comprimidos do tratamento que são distribuídos na rede pública de saúde. Porém, o que acontece é que muitos pacientes descobrem a doença em estágio mais avançado e, por isso, mesmo depois de curados, as sequelas permanecem.

Esse é o caso de Sebastiana Abadia Oliveira, de 81 anos, que está internada devido a queimaduras nos pés, resultado da falta de sensibilidade no local. Ela explica que faz quase 40 anos que descobriu a doença. “Apareceu quando eu era nova, uma mancha na perna e ela não doía. E eu dizia 'gente que estranho ela não dói'”, conta bem humorada.

Com relação ao hospital, Sebastiana lembra que o irmão morava lá e que ela ia visitar. "Era feio demais, bagunçado. Agora, o povo é mais civilizado", diz, completando que atualmente a pessoa "chega doente e até se cura", de tão bem tratada que é, ao contrário do que via antes.

Ilustres

Como estas pessoas, o hospital também abrigou até 1994, o mais ilustre de todos os seus pacientes: Lino Villachá. Conhecido como líder, pegou a doença quando tinha 12 anos de idade, mas nem por isso desistiu dos sonhos. A enfermeira conta que Lino passava tranquilidade aos outros doentes e foi quem abriu as portas do hospital pela primeira vez como forma de socialização, a partir de jogos de futebol.

Com problemas em ambas as mãos e sem as pernas, Lino ajudava as irmãs nos prontuários do hospital e escreveu três livros “Uma Janela para os Pássaros”, “Luzes do Meu Caminho” e “Minhas Flores de Flamboyant”. Ao morrer, a irmã Silvia conseguiu que o paciente fosse enterrado no pátio do hospital, onde há um monumento em sua homenagem. Hoje, uma rua ao lado do hospital leva seu nome, em reconhecimento à sua história e importância.

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Túmulo de Lino Villachá. Com hanseníase desde os 12 anos, o paciente foi um líder e exemplo para os outros
Foto: Deurico/Capital News

O hospital recebeu também, em 1992, a visita do papa João Paulo II, quando ele esteve na Capital. Além das fotos que marcaram a data e a euforia dos pacientes, ficou no local os pés do governante da igreja católica, gravados no cimento a pedido da irmã Silvia. 

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Em visita a Campo Grande, o papa João Paulo II foi ao São Julião conhecer o tratamento e abençoar os pacientes
Foto: Deurico/Capital News

Hospital

Atualmente, o Hospital São Julião é referência no tratamento da hanseníase em todo o Brasil e na América Latina, atendendo cerca de 70 pacientes por mês. Porém, as ações do hospital passaram a ser terciárias. O administrador Amilton explica que há cinco anos o hospital é contratado pelo Município e a orientação é que as pessoas passem pelos postos de saúde para uma consulta primária.

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Hospital atualmente é referência nos atendimentos de hanseníase em toda a América latina
Foto: Deurico/Capital News

Segundo Amilton, os postos e o Centro de Especialidades Médicas (CEM) estão habilitados para diagnosticar a doença, hoje não mais temida como antes. Somente nos casos de pacientes que precisam de acompanhamento e ou internação, eles serão encaminhados para o São Julião, que realiza também cirurgias reparatórias em caso de sequelas, fisioterapia, terapia ocupacional e acompanhamento do paciente.

A infraestrutura do Hospital São Julião conta com 35 leitos cirúrgicos e 103 leitos de internação. Amilton explica que por manter a planta original de construção, um prédio fica longe do outro, e por isso, são utilizados carrinhos de golf com motorista para levar os pacientes de uma sala para outra. Além disso, o hospital não possui Unidade de terapia intensiva (UTI) e, portanto, não interna pacientes cardíacos, e só realiza cirurgias marcadas com antecedência.

O estabelecimento de saúde possui 90% da receita proveniente do Sistema Único de Saúde (SUS), e a mantenedora é a Associação de Auxílio e Recuperação dos Hansenianos (AARH), que também cuida da Casa da Vovó Túlia, lugar onde ficam crianças para serem adotadas e o Centro de Apoio ao Migrante (Cedami), que serve de abrigo provisório para famílias que passam pela cidade.

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O Hospital São Julião realiza operações reparatória, fisioterapia, terapia ocupacional e atendimento pós-tratamento aos pacientes
Foto: Deurico/Capital News

 

 Por: Nadia Nadalon-estagiária  - (www.capitalnews.com.br)

 

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karolayne 07/11/2011

Parabéns ao site da Capital News e seus jornalistas, em especial à estagiária Nadia Nadalon pela matéria . O hospital São Julião tem uma história singular entre as instituíções que não deve ser esquecida. Pelo contrário, deve ser divulgada, pois, é a nossa história, a do comportamento social numa época de crise. O hospital São Julião nesse período, segundo o artigo, trafegou em dois eixos paradoxal, a saber, o desprezo causada pelo desejo de se livrar do problema por parte da sociedaade, o que de certa forma é compreensivel, e o de esperança amor e família proporcionados pela comunidade da colonia por parte dos profissionais e o que prevaleceu, sem dúvida foi este último. Parabéns a todos os funcionários da época. Somos, como sociedade, devedores desse gestos dígnos de serem imitados.

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Gleicy Nunes 26/10/2011

Muito obrigado por divulgar essa história e lição de solidariedade. A origem deste hospital faz parte da história brasileira. Faço faculdade de fisioterapia e meu pai este ano descobriu que tem hanseníase, está sendo muito bem tratado pelo hospital São Julião! este semestre tenho um trabalho e meu grupo e eu escolhemos hanseníase como tema, e lógico vamos falar sobre o São Julião! esta matéria é ótima! parabéns!

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sergio sena 23/07/2010

Parabéns ao site da Capital News e seus jornalistas, em especial à estagiária Nadia Nadalon pela matéria . O hospital São Julião tem uma história singular entre as instituíções que não deve ser esquecida. Pelo contrário, deve ser divulgada, pois, é a nossa história, a do comportamento social numa época de crise. O hospital São Julião nesse período, segundo o artigo, trafegou em dois eixos paradoxal, a saber, o desprezo causada pelo desejo de se livrar do problema por parte da sociedaade, o que de certa forma é compreensivel, e o de esperança amor e família proporcionados pela comunidade da colonia por parte dos profissionais e o que prevaleceu, sem dúvida foi este último. Parabéns a todos os funcionários da época. Somos, como sociedade, devedores desse gestos dígnos de serem imitados.

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