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Opinião Sábado, 14 de Junho de 2025, 13:22 - A | A

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Opinião

O Campo em Crise e a Recuperação Judicial do Produtor Rural: Entre a Salvação e o Paradoxo da Produção Travada

Por Guilherme Suriano Ourives*

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O agronegócio brasileiro, pilar fundamental da nossa economia e responsável por uma parcela significativa do Produto Interno Bruto (PIB) e dos empregos, tem demonstrado resiliência e capacidade produtiva invejáveis. Contudo, mesmo um setor tão robusto não está imune às intempéries econômicas. Fatores como juros elevados, intempéries climáticas (secas prolongadas, geadas inesperadas, chuvas excessivas), flutuações de preços de commodities e custos de insumos cada vez maiores (fertilizantes, combustíveis, defensivos) têm empurrado muitos produtores rurais para uma crise financeira profunda. Nesse cenário, a Recuperação Judicial (RJ), antes vista com desconfiança, emerge como uma ferramenta vital, mas que ainda enfrenta desafios paradoxais em sua aplicação no campo.

A Lei nº 11.101/2005 (LREF), que rege a recuperação judicial e a falência no Brasil, foi reformada em 2020 pela Lei nº 14.112/2020. Essa reforma teve, entre outros objetivos, tornar o processo mais eficiente e acessível, e uma das mudanças mais significativas foi a inclusão expressa do produtor rural como legitimado a buscar a RJ. Antes, a submissão do produtor rural à LREF dependia de sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, e havia debates sobre o tempo mínimo dessa inscrição. A reforma e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive com o Tema Repetitivo 1.145, flexibilizaram esse ponto, permitindo que a inscrição ocorra até o momento do pedido de recuperação, desde que a atividade empresarial seja comprovada por mais de dois anos.

Essa abertura é um avanço inegável, pois reconhece a natureza empresarial da atividade rural e a necessidade de um instrumento de reestruturação para o setor. A recuperação judicial permite ao produtor renegociar suas dívidas, obter um fôlego financeiro e reestruturar sua operação, buscando a manutenção da fonte produtora, do emprego e dos interesses dos credores. Em sua essência, a RJ promove a função social da empresa e o estímulo à atividade econômica, conforme o Art. 47 da LREF. É uma bússola para que o produtor rural possa navegar por um mar de dívidas e incertezas, evitando o colapso e garantindo a continuidade da produção que alimenta o país.

Apesar dos avanços e da importância da RJ para o agronegócio, a aplicação da lei ao produtor rural revela alguns paradoxos que, na prática, podem travar a efetividade do processo, transformando-o em um labirinto de exceções que fragmentam a dívida e dificultam uma reestruturação holística.
Primeiramente, há uma exigência de prova da crise mais rigorosa. Enquanto para outros devedores a simples declaração da crise econômico-financeira é suficiente para o processamento da RJ, o produtor rural precisa demonstrar a crise de insolvência, caracterizada pela insuficiência de recursos financeiros ou patrimoniais com liquidez suficiente para saldar sua dívida. Essa exigência, embora busque evitar pedidos oportunistas, pode atrasar o acesso à RJ em um momento crítico, quando a agilidade é essencial para evitar o agravamento da crise e a perda de safras ou rebanhos.

Em segundo lugar, os créditos essenciais são excluídos da recuperação, o que se manifesta na "trava bancária" e fiscal. Este é talvez o maior entrave e o ponto mais crítico da fragmentação da dívida. A LREF, em seus Art. 49, §§3º e 4º, exclui da recuperação judicial créditos garantidos por alienação fiduciária (como os de tratores, colheitadeiras e outros maquinários essenciais à produção), arrendamento mercantil e adiantamento de contrato de câmbio para exportação. Além disso, os créditos fiscais também não se sujeitam à RJ.

O paradoxo é evidente: como reestruturar uma atividade produtiva se os ativos essenciais a ela podem ser retirados do processo pelos credores fiduciários? Ou se o passivo fiscal, muitas vezes vultoso, não pode ser negociado no plano? Essa "trava bancária" e a exclusão fiscal impedem uma reestruturação holística da dívida, forçando o produtor a negociar separadamente com esses credores, o que pode inviabilizar o plano como um todo. A lei até prevê a suspensão da constrição de bens essenciais por um período, mas sem uma solução de longo prazo para esses créditos, a recuperação se torna um "remendo" temporário, incapaz de resolver a crise de forma integral.

Além disso, pontua-se outras exceções que contribuem para essa fragmentação: créditos vinculados à CPR com liquidação física (a Cédula de Produto Rural com liquidação física não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, conforme Art. 11 da Lei nº 8.929/1994); patrimônio rural em afetação (vinculado a Cédulas Imobiliárias Rurais ou CPRs, também não é atingido pelos efeitos da RJ, conforme Art. 10, §4º, da Lei nº 13.986/2020); dívidas não decorrentes da atividade rural ou não contabilizadas (para o produtor rural pessoa física, obrigações que não se originam diretamente da atividade rural ou que não foram devidamente contabilizadas também ficam de fora da recuperação, conforme Art. 49, §6º, da LREF); e créditos de recursos controlados já renegociados (dívidas oriundas de recursos controlados que já foram objeto de renegociação administrativa não se submetem a uma nova renegociação via RJ, conforme Art. 49, §§7º e 8º, da LREF); e dívidas para aquisição de propriedades rurais recentes (débitos contraídos nos três anos anteriores ao pedido de RJ para a aquisição de propriedades rurais também são excluídos, conforme Art. 49, §9º, da LREF).

Essa profusão de exceções, embora muitas vezes justificada por interesses setoriais e pela busca de segurança jurídica para o financiamento do agronegócio, cria um cenário de fragmentação da dívida. O princípio da par conditio creditorum, que prega o tratamento igualitário entre credores de mesma classe, é constantemente tensionado. A recuperação judicial, que deveria ser uma solução holística para a crise, transforma-se, para o produtor rural, em um processo parcial. Ele se vê obrigado a negociar em múltiplas frentes: com os credores sujeitos à RJ dentro do processo, e com os credores extraconcursais fora dele, que podem continuar suas execuções individualmente. Isso drena recursos, tempo e energia que seriam vitais para a reestruturação da atividade produtiva.

Por fim, o plano especial (Art. 70) da LREF oferece um plano especial para produtores rurais com dívida sujeita não superior a R$ 4,8 milhões, simplificando o processo ao dispensar a Assembleia Geral de Credores (AGC) e predefinir os meios de recuperação. Embora a intenção seja boa, essa rigidez pode ser insuficiente para a complexidade de muitas propriedades rurais, que demandam soluções mais flexíveis e adaptadas à sua realidade, especialmente considerando os ciclos de safra e os riscos inerentes ao agronegócio.

O risco de a RJ se converter em uma 'liquidação branca' para parte do passivo, sem os benefícios de uma falência organizada para todos os credores, é real. A complexidade imposta por essa teia de exceções pode, paradoxalmente, inviabilizar a própria recuperação de produtores rurais viáveis, que, apesar de sua importância estratégica, não conseguem concentrar seus esforços em uma única solução.

Além dos desafios legais, a Recuperação Judicial para o produtor rural ainda enfrenta o estigma social que, infelizmente, ainda acompanha o instituto. Muitos produtores veem a RJ como um sinal de fracasso, quando, na verdade, ela pode ser a única via para superar uma crise que, muitas vezes, foge ao seu controle, como secas prolongadas, geadas inesperadas ou flutuações abruptas do mercado global.

Para que a recuperação judicial do produtor rural atinja plenamente seus objetivos, é fundamental que o legislador e o Judiciário continuem a aprimorar o sistema: é crucial que todos os créditos, incluindo os fiduciários e fiscais, sejam submetidos à negociação no âmbito da RJ, com a devida proteção aos credores, mas sem inviabilizar a reestruturação. Modelos internacionais, como o americano, incluem a maioria dos créditos, permitindo uma visão mais completa do passivo. Os planos de recuperação devem ser flexíveis o suficiente para se adaptar às particularidades do agronegócio, considerando seus ciclos de safra, riscos climáticos e especificidades de mercado. O Judiciário e os profissionais envolvidos (administradores judiciais, advogados) precisam aprofundar o conhecimento sobre a realidade do setor rural, promovendo um diálogo construtivo entre devedores, credores e demais stakeholders para encontrar soluções verdadeiramente eficazes.

Em um cenário de incertezas econômicas e climáticas, a Recuperação Judicial se apresenta como uma tábua de salvação para o produtor rural. É um convite à reestruturação, à inovação e à resiliência. Mudar a percepção sobre a RJ no campo é fundamental para que mais produtores possam acessar essa ferramenta, garantindo não apenas a sua sobrevivência individual, mas a vitalidade de um setor que alimenta o país.

A recuperação judicial do produtor rural é uma semente de esperança em tempos de crise. Para que ela floresça e dê frutos, é preciso regá-la com um arcabouço legal e uma aplicação prática que compreendam e superem os paradoxos que ainda travam o potencial de um dos setores mais vitais do Brasil. É tempo de desmistificar a Recuperação Judicial e encará-la como o que realmente é: um caminho legítimo e eficaz para que o campo brasileiro continue a florescer, mesmo diante das mais severas tempestades.


*Guilherme Suriano Ourives
OAB/MS 17850
Sócio no escritório Ourives Marques Advogados e Consultores
Advogado Empresarial
Administrador Judicial
Membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB/MS
Contato: 67.2180.0097 - 98403.0701

 

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