Em minha infância eu tinha muito medo de escuro, tinha medo de dormir sozinha no meu quarto. Minha maior segurança era o meu pai, ele acendia as luzes para me mostrar que ali não tinha nada, não havia motivo para temer. Eu tinha medo de brincar com meus brinquedos novos e minha mãe brigar, meu pai pegava os brinquedos para mim e se responsabilizava. Eu tinha medo de andar a cavalo, ele segurou as rédeas e me guiou, parecia que meu pai era especialista em medos, mas ele também tinha os seus: não fumava, não bebia, e sempre cuidou de sua saúde. Cresci e descobri que meus medos eram pequenos e o meu maior medo era perde-lo.
O destino sempre nos prega peças, que muitas das vezes não são engraçadas, pelo contrário, são cruéis e injustas. O que meu pai não sabia, e ninguém sabia, era que uma doença da mente chegaria sem pedir licença e aos poucos, embora ligeira demais, tomaria conta de nossas vidas. Em um simples piscar de olhos, coisas simples se tornaram apenas lembranças. Um simples “eu te amo filha” ficaria tão longe da realidade. Gestos simples se tornaram lembranças gigantescas e valiosíssimas.
Foi assim que em dois anos, após os primeiros sintomas de esquecimento de fatos do presente e das lembranças de seu passado, o meu pai recebeu o diagnóstico definitivo: era a doença de Alzheimer. Eu tinha apenas 17 anos e não estava preparada para isso, porém hoje sei que eu poderia ter 50 anos e nunca estaria preparada para ficar sem a presença do meu pai. Me recordo de que no início ele se esqueceu do caminho do mercado para sua casa, esqueceu de ir até a varanda pegar o jornal impresso diário, algo que ele não esquecia nunca.
Meu pai sempre foi muito presente, tanto na minha vida quanto na vida de meus outros quatro irmãos, embora, mesmo eu sendo filha adotiva, ele nunca tenha me diferenciado. Meu pai gostava de diálogos e não achava certo homem bater em mulher, meu pai nunca levantou a mão para mim. Meu pai contava que, quando minha mãe queria brigar, ele saía a caminho da roça e voltava somente ao escurecer, quando ela já estava calma. Ah, meu pai adorava contar causos antigos e eu adorava ouvir.
Bem, com a chegada repentina dessa doença, foi difícil a aceitação e a adaptação de todos os familiares, que não estavam acostumados com a doença. Eu acabei pegando o hábito de falar do meu pai no passado, pois hoje ele não reconhece ninguém mais, porém ele sente quando é abraçado e beijado com amor: seu sorrisinho vai de orelha a orelha. Ele não consegue mais enunciar uma frase com sentido, mas, mesmo assim, eu gosto de conversar com ele.
O Alzheimer muda drasticamente uma estrutura familiar, e o que aprendemos é rever a forma como observamos a vida. Meu pai me ensinou que o amor é a força maior, que permanece até mesmo depois que todas as memórias forem embora. Hoje não tenho mais medo de escuro nem de andar a cavalo, e aprendi que medos são necessários para adquirir coragem. Muitas pessoas enfrentam isso, mas não é um assunto tão comentado, pois dói falar, dói sentir. É difícil imaginar como é a vida do lado de quem tem a doença – o esquecimento de toda uma vida. Mas uma coisa é certa, tratar a situação com carinho e brincadeira é a melhor forma. Energias positivas revigoram qualquer alma. Então continuo aqui com meu sorriso no rosto e se, para ter um pai como este na minha vida, fosse necessário, eu enfrentaria tudo de novo, pois sei que sou uma pessoa que foi muito amada no passado, e que também é muito amada hoje, porque o amor é questão de sentir.
*Ana Carolina de Deus
Acadêmica do ultimo ano do curso Bacharelado em Letras pela UEMS.
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