O drama dos agricultores que, esmagados por dívidas, acabam tirando a própria vida não pode mais ser tratado como “caso isolado”. Trata-se de uma tragédia estrutural, alimentada por duas engrenagens principais: a má gestão governamental e a omissão no cumprimento das normas que deveriam proteger o produtor rural.
A política agrícola brasileira, em vez de proteger quem garante a segurança alimentar e as exportações do país, tem sido um exemplo contínuo de improviso e má gestão.
Programas de refinanciamento e securitização surgem tarde demais, quando a execução já corroeu a dignidade do agricultor. As linhas de crédito, que deveriam apoiar a produção, são engessadas, repletas de exigências absurdas e contradições.
O Manual de Crédito Rural (MCR) prevê prorrogação em caso de frustração de safra, mas, na prática, os bancos se recusam a aplicar a regra. Pior: o governo assiste passivamente à prática abusiva dos bancos de “vendas casadas” de seguros, títulos e capitalizações, que consomem até 35% dos valores tomados pelos produtores rurais.
Ou seja: o agricultor financia R$ 1 milhão, mas só consegue investir pouco mais da metade. O restante é engolido por um sistema bancário cartelizado, com o aval implícito das autoridades regulatórias. É bom lembrar que o crédito rural brasileiro está regulado por normas claras. O MCR, instrumento normativo do Banco Central, prevê expressamente a prorrogação das dívidas em casos de frustração de safra, queda de preços ou dificuldades climáticas excepcionais.
O fundamento jurídico dessa regra está na própria Constituição Federal (art. 187), que coloca a política agrícola como dever do Estado, destinada a garantir a atividade produtiva e a reduzir riscos. Na prática, contudo, essas salvaguardas são negligenciadas. Os bancos, em vez de aplicar as prorrogações, pressionam os produtores a quitarem dívidas em prazos inexequíveis, impondo cláusulas abusivas e travas bancárias.
Quando o agricultor, por motivos alheios à sua vontade, não consegue cumprir, a resposta é imediata: execução judicial, penhora de maquinário e bloqueio da produção. O produtor, que sempre quis pagar, é transformado em inadimplente, como se sua dívida fosse resultado de má-fé, e não de circunstâncias reconhecidas pelo próprio ordenamento jurídico.
Essa distorção tem uma consequência dramática: a perda da dignidade produtiva. O agricultor não perde apenas o crédito ou o maquinário; perde a própria identidade, sua personalidade produtiva enquanto sujeito que planta, alimenta e gera divisas. É nesse ponto que a inadimplência deixa de ser questão financeira e se converte em questão existencial. A cada leilão judicial, a cada bloqueio de safra, o Estado contribui para empurrar o agricultor ao abismo da desesperança.
O drama chega ao ponto extremo: o suicídio. Não se trata de uma decisão isolada de indivíduos fragilizados, mas de uma consequência direta de um sistema que retira do agricultor não só a renda, mas a própria identidade produtiva. Ao perder o trator, a colheitadeira, a terra, o agricultor perde também o seu futuro e o de sua família.
É insustentável que um país que se orgulha de ser celeiro do mundo permita que sua agricultura seja esmagada por más decisões governamentais e pela lógica desumana dos bancos. A crise do crédito rural brasileiro é a face mais cruel de uma gestão pública míope, que não enxerga que soberania alimentar começa com a dignidade de quem planta.
O problema não é apenas político ou econômico. É jurídico. Não basta apontar falhas na política agrícola: há o descumprimento do marco legal já vigente. O produtor não pede favores, mas a aplicação das normas que garantem a continuidade de sua atividade. A ineficiência regulatória e a conivência do governo com práticas abusivas equivalem a um abandono institucional do campo.
Enquanto o Brasil se orgulha de ser potência agroexportadora, fecha os olhos para um paradoxo cruel: a cada safra que abastece o mundo, produtores nacionais são destruídos por um sistema que não aplica as garantias jurídicas mínimas de que necessitam para sobreviver. O suicídio no campo não é, portanto, uma escolha individual, mas a consequência última de uma omissão coletiva: do Estado que não cumpre suas funções, do sistema financeiro que age em abuso e da sociedade que prefere ignorar a morte silenciosa atrás da abundância.
A solução está em aplicar o que já existe:
• Reconhecer a onerosidade excessiva como fundamento legítimo de revisão contratual;
• Exigir o cumprimento da função social do contrato, preservando a continuidade da atividade rural;
• Fiscalizar a aplicação da prorrogação compulsória prevista no MCR.
O arcabouço jurídico já existe. O problema é a sua não aplicação prática, fruto da inércia estatal e da lógica predatória do sistema financeiro. Enquanto isso não acontecer, seguiremos convivendo com a contradição mais dolorosa do agronegócio brasileiro: um setor bilionário, sustentado por vidas que se perdem no silêncio de um crédito rural que, quando mal aplicado, se transforma em sentença de morte.
*Charlene de Ávila
Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura.
**Néri Perin
Advogado agrarista, especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do Escritório Néri Perin Advogados Associados.
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