“Papai ainda se lembra quando me levou para o colégio? - perguntou rindo. [...] Eu ia desesperado, e papai não parava, dava-me cada puxão, e eu com as perninhas…”
Ao lermos essa história tão conhecida de Machado de Assis, nos dói ver a dor e os temores causados pela desconfiança de Bentinho enquanto a trama se desenrola. Nos dói ver como ele começa a tratar seu filho, Ezequiel, quando Ezequiel se aproxima querendo o contato, o amor e a atenção do pai. Nos dói ver os sentimentos de Capitu, quando Bentinho, por fim, lhe lança as suas desconfianças. Enfim, ao ler “Dom Casmurro”, nos dói ver como um amor de criança pode acabar em tragédia, e como o sonho de uma vida feliz pode ser destruído pela traição, seja ela consumada, ou a simples desconfiança da mesma. No fim, quando vamos para a leitura de “Dom Casmurro” com a intenção de saber se Capitu “traiu ou não traiu” Bentinho, podemos não sair com uma resposta certa, mas, com certeza, saímos com uma importante lição ao ver uma bela história de amor se tornar em uma dolorosa tragédia, onde vemos um lar e uma família caminhar em direção à destruição.
Em um mundo cada vez mais acostumado ao julgamento fácil e às conclusões apressadas, “Dom Casmurro” se destaca como um espelho da alma humana, revelando as rachaduras invisíveis que o tempo e o ciúme podem abrir nos relacionamentos. Ao longo de todo o livro não temos certeza se Capitu errou, e quando focamos somente nessa dúvida, que Machado não quis nos tirar, esquecemos que o verdadeiro drama dessa história está na destruição de um amor que nasceu puro, mas que foi se corrompendo pelas suspeitas silenciosas e pelos silêncios desconfiados.
É impossível ler o livro sem sentir um aperto no peito quando vemos Ezequiel buscar o afeto de um pai que já não enxerga no menino um filho, mas uma possível prova viva da suposta traição de sua esposa. E é por meio das ações de Bentinho que podemos ver as tristes consequências da desconfiança, de maneira que vemos que a desconfiança de Bentinho não destrói apenas o seu casamento, mas destrói, também, a sua paternidade, as boas memórias com seu filho e sua esposa. Ezequiel não foi culpado de nada, mas pagou o preço mais alto: o de crescer sem o apreço e o amor do próprio pai. Um pai que, por não saber lidar com suas desconfianças, condenou o filho a viver longe de seu próprio lar.
Uma das cenas mais pesadas e tristes do livro, para mim, acontece no almoço entre Bentinho e Ezequiel. No trecho, Ezequiel, já adulto, relembra com carinho o momento de sua infância em que seu pai o levava para o internato. A cena mostra Ezequiel tentando se aproximar de Bentinho, seu pai, enquanto Bentinho fugia de Ezequiel, tentando manter a maior distância possível entre ele e Ezequiel. Para Ezequiel, em sua inocência de criança, aquilo era uma brincadeira, para Bentinho, era uma tentativa de se afastar o máximo possível da criança que ansiava por sua presença, como se a mesma fosse um tipo de praga mortífera a ser evitada.
No capítulo “A Viagem”, Bentinho nos descreve como ele levou Ezequiel ao colégio, arrastando Ezequiel por meio de puxões. Bentinho sentia repulsa e desejava distância da criança, vendo Ezequiel como uma lembrança da suposta traição de Capitu. Na ânsia de fugir da imagem da traição, Bentinho se esqueceu que não se foge de um filho - e, ao rejeitar Ezequiel, ele não puniu Capitu, mas condenou a inocência.
Confesso que fui “enganado” por Bentinho até quase o final do livro. Já que praticamente toda a história é narrada do ponto de vista dele, Machado nos leva à compactuar com as desconfianças de Bentinho, pelo menos, me levou a compactuar com ele até a cena em que ele despeja em Capitu todas as suas desconfianças. E, de repente, depois de tomar conhecimento do outro lado, do lado de Capitu, a história deu uma reviravolta e todas as “quase certezas” que até então eu compartilhava com Bentinho deram lugar a tão conhecida dúvida pela qual o livro é tão conhecido.
Depois de Bentinho despejar toda uma vida de dúvidas em cima de Capitu, passamos e conhecer um pouco mais da personalidade de Capitu, não a Capitu que Bentinho nos narra durante o livro, mas outros aspectos de sua personalidade, e vemos em Capitu uma mulher que sofre calada, que vê seu mundo ruir sem nunca ter a chance de se defender plenamente. Uma mulher que, em vez de confrontar ou revidar as acusações que lhe são feitas, ela simplesmente se afasta. E, com as ações de Capitu, podemos aprender que nem toda dignidade grita. Nem toda dignidade quer se impor a todo custo. Existem dignidades que preferem partir do que ferir o outro. Ao partir, Capitu deixa atrás de si não uma confissão, mas sua ausência. E o vazio que ela deixa é, por si só, mais devastador do que qualquer outra coisa.
Se Capitu traiu ou não, continuará sendo uma dúvida permanente. Mas o que Machado nos mostra com clareza é que a dúvida, quando alimentada sem freios, transforma-se em sentença. Bentinho, sem ter provas, se tornou, ao mesmo tempo, o juiz, o jurado e executor de uma mulher que um dia jurou amar. Toda a tragédia de “Dom Casmurro” não se sustenta em fatos, mas em uma suspeita. Não é o adultério que destrói a família, mas a possibilidade dele ter acontecido. E, a partir disso, tomamos conhecimento de uma triste verdade: a simples desconfiança de uma traição pode ser tão destrutiva quanto a traição em si.
Vivemos atualmente em uma sociedade em que a confiança está em ruínas. Lares são desfeitos por mensagens mal interpretadas, gestos mal explicados, olhares mal compreendidos. vez seja por isso que Dom Casmurro ainda fala tão alto: porque sua tragédia continua sendo a nossa. Ainda hoje, famílias caminham para a destruição não por erros concretos, mas por suspeitas sem chão. Não por traições consumadas, mas por corações incapazes de crer no outro.
Ao terminar o livro, não saímos com uma resposta, mas saímos com uma advertência e um grande aprendizado: Não é preciso que algo aconteça para que tudo se perca. Às vezes, basta duvidar. Bentinho começou a história como um menino doce, terminou como um velho casmurro - um rabugento, mal-humorado, desconfiado e amargurado. A vida de Bentinho não foi destruída por problemas externos, ela foi destruída pela sua própria incapacidade de confiar e perdoar.
Essa é uma das lições que podemos aprender com “Dom Casmurro": Se quisermos construir lares verdadeiramente sólidos, talvez devamos aprender com Bentinho não o que fazer, mas o que jamais repetir.
*Wanderson R. Monteiro,
Autor de São Sebastião do Anta – MG.
Dr. Honoris Causa em Literatura e Dr. Honoris Causa em Jornalismo.
Bacharel em Teologia, graduando em Pedagogia.
Acadêmico correspondente da FEBACLA. Acadêmico fundador da AHBLA. Acadêmico imortal da AINTE.
Autor dos livros “Cosmovisão em Crise: A Importância do Conhecimento Teológico e Filosófico Para o Líder Cristão na Pós-Modernidade”, “Crônicas de Uma Sociedade em Crise”, “Atormentai os Meus Filhos”, e da série “Meditações de Um Lavrador”, composta por 7 livros.
Autor de 10 livros.
Vencedor de 4 prêmios literários. Coautor de 15 livros e 4 revistas.
(São Sebastião do Anta – MG)
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