A seca prolongada que enfrentamos em nosso país tem agravado um problema recorrente: as queimadas. Estas queimadas, tanto as de origem natural quanto aquelas provocadas de forma intencional trazem implicações não apenas para o meio ambiente, mas também para os proprietários de imóveis rurais e urbanos. À luz do direito ambiental brasileiro, esse fenômeno exige uma análise cuidadosa das responsabilidades, dos direitos dos afetados e das obrigações impostas por normas específicas.
O Contexto das Queimadas e a Responsabilidade Ambiental no Brasil
Por força do § 3º do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, o Brasil adotou a o regime de responsabilidade tripla, determinando que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Desta forma, em relação às queimadas, além das sanções administrativas e penais determinadas pela legislação, existe a obrigação de reparação do dano causado ao meio ambiente.
O Decreto Federal nº 6.514/2008, o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) e a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) são os principais diplomas normativos que regulam a conduta de proprietários em áreas florestais e de vegetação. De forma geral, o Código Florestal proíbe o uso de fogo nas florestas e demais formas de vegetação seja para limpeza de área ou para outros fins, visando a proteção do meio ambiente e evitando o desmatamento, a degradação do solo, a incidências das queimadas, a poluição do ar e a perda de biodiversidade.
Diante da constatação de queimada o proprietário de área urbana ou rural que tenha sua propriedade afetada, independentemente de sua origem, deve estar atento às implicações jurídicas decorrentes. Como acima referenciado, a responsabilização pode ocorrer tanto no caso de queimadas provocadas quanto por incêndios advindos de propriedades vizinhas ou de áreas públicas.
A Responsabilidade por Queimadas em Propriedades Particulares
A legislação ambiental brasileira é clara ao determinar que o proprietário de terras tem o dever de zelar pela conservação ambiental dentro dos limites de sua propriedade. O artigo 225 da Constituição Federal estabelece que a defesa do meio ambiente é responsabilidade de todos, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defesa e preservação. No caso de incêndios acidentais ou naturais, a responsabilização administrativa e criminal do proprietário dependerá de sua conduta, ou seja, se foram tomadas ou não as medidas preventivas necessárias para evitar a propagação do fogo. A Lei de Crimes Ambientais em seu artigo 41 prevê sanções para quem provocar incêndios em florestas e outras formas de vegetação, com penalidades que podem incluir multa e prisão. No mesmo sentido, o Decreto Federal nº 6.514/2008, em seu artigo 58 proíbe o uso do fogo sem autorização em áreas agropastoris sem autorização do órgão com penalidade de multas que podem variar de R$ 1.000,00 até R$ 10.000,00 por hectare ou fração. O mesmo Decreto pune quem provoca incêndios em florestas ou outras formas de vegetação.
Caso o incêndio seja causado por terceiros ou se propague de áreas vizinhas, o proprietário pode não ser diretamente responsabilizado, desde que prove que tomou todas as providências possíveis para evitar o dano, como por exemplo a instalação e manutenção de aceiros e a comunicação imediata às autoridades competentes em caso de fogo descontrolado.
Já quanto à responsabilidade civil ambiental, o proprietário poderá ser obrigado a adotar as medidas de recuperação do meio ambiente lesado, para recuperação integral do dano, mas apenas aqueles ocorridos nos limites do seu imóvel, visto que a responsabilidade de reparação do meio ambiente, nesse caso, recairá sobre o proprietário do bem (obrigação propter rem).
Medidas que os Proprietários Devem Adotar
Ao enfrentar uma situação de queimada, os proprietários têm uma série de medidas que podem ser tomadas, tanto de caráter preventivo quanto reativo:
• Prevenção de Incêndios: A legislação exige que os proprietários rurais mantenham áreas de proteção como aceiros, para evitar a propagação de fogo. Além disso, práticas como a vigilância constante e o uso de tecnologias de monitoramento (drones, por exemplo) são recomendadas.
• Comunicação Imediata: Ao identificar o início de uma queimada, o proprietário deve informar imediatamente os órgãos competentes, como o Corpo de Bombeiros e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), além de procurarem a Polícia Civil para emissão de Boletim de Ocorrência. Isso pode servir como prova de que o proprietário tomou medidas diligentes para conter o dano e de sua boa-fé.
• Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (PRAD): Se as queimadas atingirem áreas de preservação permanente ou reservas legais, o proprietário pode ser obrigado a elaborar um PRAD, conforme previsto na legislação ambiental.
Mudanças Climáticas e o Aumento das Queimadas
As mudanças climáticas têm sido um fator determinante no agravamento das queimadas em todo o mundo. No Brasil, o aumento das temperaturas e a redução das chuvas em certas regiões tornam os ecossistemas mais suscetíveis ao fogo. Esse fenômeno, associado à exploração irregular de áreas naturais e à falta de fiscalização eficaz, tem gerado cenários cada vez mais preocupantes.
A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) reconhece que as mudanças climáticas exacerbam eventos extremos, como secas e incêndios florestais. Neste contexto, o Brasil, como signatário do Acordo de Paris, compromete-se a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e a adotar medidas de adaptação às mudanças climáticas. Entretanto, a realidade mostra que essas medidas ainda são insuficientes para evitar a escalada das queimadas.
A Litigância Climática como Instrumento de Defesa dos Proprietários Afetados
Com o aumento dos eventos climáticos extremos, como secas prolongadas e queimadas de grandes proporções, surge a questão: poderiam os proprietários afetados responsabilizar o Poder Público pela falta de medidas eficazes de mitigação e adaptação às mudanças climáticas?
A litigância climática tem ganhado força em várias partes do mundo, como uma ferramenta para pressionar governos e empresas a cumprirem suas obrigações ambientais. No Brasil, embora ainda seja um tema incipiente, já há precedentes de ações judiciais que visam responsabilizar o Estado por sua inação frente às mudanças climáticas.
A responsabilidade civil do Estado, prevista no artigo 37, § 6º da Constituição Federal, pode ser invocada pelos proprietários que comprovarem que o Poder Público falhou em implementar políticas eficazes de prevenção e combate às queimadas, ou que foi omisso na adoção de medidas de adaptação às mudanças climáticas. Para tanto, seria necessário demonstrar:
• Nexo de causalidade: Provar que as mudanças climáticas exacerbadas pela inação ou omissão do Estado contribuíram significativamente para o evento de queimada que causou os danos à propriedade.
• Dano ambiental: Comprovar o dano direto à propriedade, que pode incluir a destruição de áreas produtivas, florestas e biodiversidade.
• Falta de medidas preventivas: Demonstrar que o Estado não adotou medidas adequadas para prevenir e mitigar os efeitos das mudanças climáticas, como o controle de queimadas e o planejamento de políticas de adaptação.
Nesses casos, a busca pelo amparo do Poder Judiciário será mais efetiva caso o remédio processual seja proposto por uma pessoa jurídica, representante dos interesses desses proprietários, tal como uma Associação.
O Enfrentamento deste Cenário Desafiador
As queimadas no Brasil representam um desafio complexo, que envolve não apenas questões ambientais, mas também jurídicas. Proprietários de terras afetados por esses incêndios devem estar cientes das suas responsabilidades e dos seus direitos, tanto para evitar a responsabilização em casos de negligência quanto para buscar a reparação de danos quando prejudicados por ações de terceiros ou pela omissão do Estado.
À luz das mudanças climáticas e do agravamento dos eventos extremos, a litigância climática surge como um caminho possível para que proprietários afetados responsabilizem o Poder Público por sua omissão em adotar medidas adequadas de prevenção e mitigação. O fortalecimento do arcabouço jurídico e a conscientização sobre os direitos dos proprietários são passos fundamentais para enfrentar este cenário desafiador.
Assim, cabe não apenas ao proprietário rural adotar medidas preventivas e buscar reparações em caso de danos, mas também ao Estado agir de maneira proativa para controlar as queimadas e implementar políticas eficazes de adaptação às mudanças climáticas. A inação, como demonstrado pela crescente litigância climática, pode acarretar consequências jurídicas significativas para os gestores públicos.
*Luis Fernando Penteado
Consultor da área de Direito Ambiental, do Salles Nogueira Advogados.
**Thais Leonel
Sócia do Salles Nogueira Advogados. Especialista em Direito Ambiental com ênfase em Mudanças Climáticas pela Universidad de Castilla-La Mancha - UCLM – Espanha.
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