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Reportagem Especial Terça-feira, 04 de Maio de 2010, 17:20 - A | A

Terça-feira, 04 de Maio de 2010, 17h:20 - A | A

Um dia normal na vida de Humberto

Ana Maria Assis - Capital News (www.capitalnews.com.br)

Levantar. Escovar os dentes. Tomar banho. Vestir a roupa. Pentear os cabelos. Fazer a barba. Trabalhar, pagar contas, ir ao banco, médico, restaurante. Tudo isso, são atividades comuns do homem urbano, que podem ser executadas sem dificuldades ou muito planejamento.

Este homem ao menos repara na força muscular que utiliza para agir em cada instante do seu cotidiano atribulado de compromissos. Mas, para quem tem esta faculdade comprometida, como no caso de Humberto Louveira, de 47 anos, essas atividades tão comuns são muito mais que ofícios de um dia a dia conturbado. Para ele, muitas vezes, transformam-se em sacrifícios diários, que devem ser superados e encarados como desafios de uma vida inteira.

Humberto precisa da cadeira de rodas há sete anos. Ele conta que foi um jovem agitado e que trabalhava muito, do tipo egoísta que não pensava em ajudar os outros. Hoje, Humberto reconhece que sua irmã é também sua maior companheira. “Aparecida sempre me acolheu”.

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Irmã de Humberto, Aparecida Louveiro, é sua “maior companheira”
Foto: Ana Maria Assis/Capital News

Ela lembra que Humberto sempre foi uma pessoa nervosa, que se irritava facilmente e que, ainda, era usuário de drogas. Para ele, essas características da sua juventude foram decisivas para que tivesse o destino que tem, conviver com a cadeira e com a doença. Humberto tem Síndrome Miastênica de Lambert-Eaton, uma distrofia muscular ligada ao mau funcionamento do sistema nervoso.

“Para o pobre, tudo é mais difícil”. Assim que Humberto explica suas “correrias” para fazer o tratamento da doença, trabalhar e desempenhar todas aquelas atividades comuns de um homem urbano. Humberto tem uma lanchonete em uma das esquinas de seu bairro, o São Conrado, em que vende lanches todas as noites. O local é chamado de “Beto Lanches” e para manter o espaço, Humberto conta com seu irmão, que mora com ele, e com uma amiga.

Com o dinheiro de seu trabalho, Humberto juntou R$ 5 mil e realizou seu sonho logo que entrou em 2010: comprou uma cadeira de rodas motorizada, o que para ele significava independência.

A alegria durou pouco tempo, pois, a cadeira estragou há dois meses, ele enviou para o conserto na loja autorizada que fica em São Paulo e até agora não teve resposta de quando ela vai voltar a funcionar e ser devolvida ao dono. Enquanto isso, Humberto usa uma cadeira de rodas convencional e conta com a ajuda de amigos que nem sempre estão disponíveis para acompanhá-lo em seus compromissos.

Acessibilidade no Transporte Coletivo

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Com a cadeira motorizada no conserto há dois meses, Humberto usa uma cadeira de rodas convencional
Foto: Ana Maria Assis/Capital News

Se para pessoas que possuem as pernas aptas à caminhada usar o transporte coletivo de Campo Grande já é exaustivo, pode-se imaginar o que isso significa para Humberto e todas as pessoas com necessidades especiais da Capital.

Mas, para não ficar apenas na imaginação, a equipe do Capital News acompanha Humberto do bairro São Conrado até a Praça Ary Coelho, entrando nos ônibus adaptados, que são os únicos que Humberto pode utilizar. Segundo ele, sempre tem que resolver algo longe de seu bairro e, portanto, está acostumado a usar o transporte coletivo.

Conforme Rosana Puga de Moraes Martinez, presidente da Associação de Doenças Neuromusculares de Mato Grosso do Sul (Adone), quem usa cadeira de rodas tem dificuldades para chegar em locais de tratamento das doenças. “O centro de tratamento fica no Monte Líbano, além de não ter sempre a adaptação no ônibus, eles ainda descem longe e tem de enfrentar as ruas, pois as calçadas não são adaptadas”, ela diz ainda que “não basta ter a adaptação no ônibus, mas também pontos estratégicos visando a proximidade com os centros de tratamento.

O primeiro desafio de Humberto é encontrar algum amigo para acompanhá-lo. Um diz que não vai porque estava trabalhando, o irmão deste disse que não iria, pois, conforme Humberto, tem vergonha. Humberto ligou para outro, que estava bêbado demais para acompanhá-lo naquela segunda-feira, às 9h. Mas, enfim, foi atendido quando ligou para sua amiga Juliana, que também o ajuda no “Beto Lanches”. Juliana é amiga do “Beto”, como costuma chamar, desde criança. Ajudá-lo fez com que a moça tivesse um novo propósito na vida: cursar a faculdade de Assistência Social.

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Humberto conta com a ajuda de Juliana, sua amiga que quer ser assistente social
Foto: Ana Maria Assis/Capital News

Seguidos pelo Capital News, Humberto e Juliana vão até o ponto de ônibus. Ele faz questão de mostrar a rampa que dá acesso às calçadas do bairro. “Nos bairros de Campo Grande, quando o asfalto é novo, eles já estão pensando na gente, fazendo essas rampas de acesso”. Cerca de 20 minutos depois, chegou o primeiro ônibus “São Conrado”, que iria até o terminal Bandeirantes. O ônibus era adaptado, outro recurso elogiado por Humberto, que diz que a maioria dos ônibus sentido bairro-centro já tem o sistema de adaptação, e que o problema maior é com os de linha vermelha (080, 087, 085).

Chegando ao Terminal Bandeirantes

Logo vimos que Humberto tem razão. Depois de cerca de 30 minutos dentro do ônibus, que está com o espaço para Humberto em estado conservado, com o cinto de segurança e as travas em funcionamento, chegamos ao terminal Bandeirantes. Humberto contou que já teve problemas com o atendimento nos ônibus e também nos terminais. “Em primeiro lugar, os profissionais têm que saber lidar com pessoas especiais. Os funcionários precisam passar por uma reciclagem”, disse Humberto denunciando ainda que “às vezes parece que eles não estão na profissão certa”. Humberto lembrou de como trabalha em sua lanchonete: “Eu gosto da minha profissão, amo fazer as pessoas comerem ali do bom e do melhor. Mas eles parecem não gostar do que fazem”.

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Humberto reclama da entrada do Terminal Bandeirantes, a catraca é apertada e o caminho é inclinado
Foto: Ana Maria Assis/Capital News

Outro problema constatado por Humberto é a rampa de acesso ao terminal. O cadeirante que vem da rua e não de um ônibus, não cabe com sua cadeira no espaço da catraca do terminal. Ele reclama dos restaurantes da Capital também, que possuem o mesmo problema, sem a adaptação das entradas. “Cheguei a ficar horas no centro da cidade procurando um restaurante. Aliás, o centro da Capital é o pior lugar para o cadeirante”, disse Humberto.

Enquanto Humberto conta uma história e outra, vários ônibus 080 passam por ali em 40 minutos, mas nenhum adaptado. Humberto estava contando que em Campo Grande “falta tanta coisa” para pessoas com necessidades especiais. Ele contou que é difícil encontrar apoio quando o tratamento é fora do Estado, que tudo exige muita burocracia, que há poucos médicos neuromusculares na Capital e que, mesmo com todas as dificuldades e com a doença, ele aprendeu a lutar todos os dias pela sua saúde.

A Espera

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Vários ônibus passam por Humberto, mas ele espera o circular adaptado, único que pode utilizar por portar deficiência física
Foto: Ana Maria Assis/Capital News

Papo vai, papo vem, e os ônibus também. E nada de chegar o ônibus adaptado. Humberto chegou a contar um pouco mais da época em que usava drogas. Segundo ele, seu irmão também está neste “mundo” e ele o aconselha todos os dias a “sair fora dessa”. “Eu só queria curtição. Sei que aquela é minha vida perdida. Se eu voltasse no tempo teria de jogar aquela parte toda em um poço, tampar e ser um Humberto bem melhor”, afirma com arrependimento por ter usado cocaína durante quase 20 anos.

Mais de uma hora depois, chega o ônibus adaptado. Um cobrador já havia reparado que estava sendo feita uma reportagem e foi até Humberto para dizer que “até junho vão aumentar os ônibus adaptados da linha vermelha”. Humberto então se acomoda no espaço de cadeirantes. Ele lamenta o que era visto pelo caminho: diversas crianças vindo ou voltando das escolas com cigarros nas mãos.

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Mais de uma hora o ônibus adaptado que Humberto espera chega ao terminal
Foto: Ana Maria Assis/Capital News

Enfim, chegamos à Praça Ary Coelho. Humberto pede um sorvete e continua contando da sua vida. Ele diz que já aprendeu a conviver com a doença. Além de “se virar sozinho”, ainda curte a vida de vez em quando, como no Carnaval , quando desfila pela Escola de Samba Vila Carvalho. “Como vê, as pessoas ficam olhando quando a gente está na cadeira. Por isso tem gente que tem vergonha de me ajudar. Mas eu acho que vergonha é ficar bêbado, usar drogas, isso sim é de se ter vergonha”, diz Humberto, denunciando os valores invertidos da sociedade. Ele conta que o irmão que mora junto dele foi abandonado pela esposa e pelos filhos: “Ele preferiu as drogas do que a família”.

Bom Exemplo

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Humberto administra uma lanchonete em seu bairro
Foto: Ana Maria Assis/Capital News

Humberto além de administrar o “Beto Lanches”, vende roupas e sapatos usados em sua casa. Ele diz que trabalha tanto porque ainda tem sonhos, e que gosta de participar e de ajudar seus colegas porque “faz bem ao ser humano ajudar, quem foi ajudado um dia tem que ajudar também”. Humberto lembra que se as pessoas forem pensar em tudo de modo negativo, desistem facilmente: “Temos que nos conformar com nossas limitações. Para quem vive sentado em uma cadeira, até uma dor na bunda é inevitável, mas se você quiser continuar, você tem que esquecer essas coisas. Se acumular tudo de ruim na cabeça vai ficar louco”, ensina.

Para Humberto, a vida hoje é muito mais que vícios ou que seus interesses pessoais. “Eu sou feliz hoje. Busco ajudar os outros que se encontram como eu ou ainda em situação pior, eu corro atrás, eu tento. Se alguém me diz ‘não’ hoje, eu sei aceitar. Mas depois, eu chego em casa, durmo, e acordo pensando em outro jeito para buscar o meu sim”.

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Depois do passeio na Praça Ary Coelho, a equipe do Capital News evitou mais uma hora de espera e deu uma “carona” para Humberto
Foto: Ana Maria Assis/Capital News


Por Ana Maria Assis - Capital News (www.capitalnews.com.br)

 

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