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ENTREVISTA Sábado, 20 de Setembro de 2014, 12:13 - A | A

Sábado, 20 de Setembro de 2014, 12h:13 - A | A

O pé amarrado, o relógio que ninguém queria dar corda e a barbicha de Roberto Higa

Fernando Hassessian - Capital News (www.capitalnews.com.br)

Para cada capítulo da história de Mato Grosso do Sul tem uma foto de Roberto Higa. O Capital News conversou com um dos personagens mais emblemáticos do Estado, e descobriu que suas histórias vão muito além dos registros fotográficos. Trechos de história, como “O relógio fedido”, a “Paquera dos anos 70” e a melhor de todas, “A barbicha”, rendeu à reportagem uma das mais agradáveis entrevistas dos últimos tempos.

Roberto Higa, depois de 45 anos de carreira, finalmente lança seu primeiro livro - Olhar - com as fotos mais emblemáticas de seu trabalho, e a história por trás de cada uma delas.

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A história de Campo Grande contada pelas lentes de Roberto Higa
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Foto do livro Olhar, de sua autoria, com garoto que era mantido preso dentro de casa
Foto: Deurico/Capital News

Capital News: Como foi o caso da foto da capa do seu livro?

Higa: Todas as fotografias têm uma história. Nessa aqui, quando começaram a povoar aquela região do Guanandi, ali era uma favela. Então foi uma casinha aqui, outra casinha ali. Os visinhos começaram a ouvir um barulho dentro de um barraco. Chamaram a polícia e descobriram este menino lá dentro, com cerca de onze ou doze anos de idade. A mãe dele era empregada doméstica, e naquele tempo não tinha lei para empregada doméstica, então se fosse preciso, trabalhava o dia todo, sem parar. Então ela saía e o menino estava dormindo; ela chegava ele estava dormindo, e o menino ficava o dia todo em casa. Não aprendeu a falar, a andar; ele grunhia. Ele ficava amarrado em um arame liso, dentro do barraco, e ele só podia andar pra lá e pra cá sem sair de casa, igual cachorro. Ele não tinha nenhuma deficiência, ele era normal, mas estava atrofiado. Na época não tinha entidade para cuidar de criança. Chegou a polícia lá e levou ele pra delegacia, pois não tinha lugar para levar ele.

Capital News: E não havia nenhuma entidade de assistência social?

Higa: Não tinha, isso só começou nos anos 80, não tinha lugar nem pra mendigo. Tinha um mendigo que ficava ali na 14, na Praça Ary Coelho. Todo mundo dava uma comida pra ele, uma pinga, aí quando começou esse negócio de assistência social, mandaram ele pra Cuiabá, e chegou lá ele morreu, porque não estava acostumado com isso, deram comida pra ele, deram banho, mas ele morreu seis meses depois.

Capital News: Qual foi o registro fotográfico mais emblemático da história de Mato Grosso do Sul?

Higa: A criação da Universidade. Na época imperava a lei do calibre 38” e do 44”. Ainda tem um pouco de resquício disso, principalmente na fronteira, mas naquela época a lei era essa. Não tinha essa de mandar prender: mandava matar. Então quando criou a Universidade, começou a vir estudantes de fora, e atrás dos estudantes vieram as famílias dos estudantes. Então começou a mudar o conceito no estado. A Universidade, que era Estadual e agora é Federal, desencadeou todo o desenvolvimento do Estado e abriu as portas para que se tornasse o que é hoje.

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Universidade, que mudou a história do Estado
Foto: Roberto Higa/Cedida

Capital News: E o relógio da 14, qual foi sua história?

Higa: Essa história é até engraçada, pois aquele relógio era um trambolho ali no meio da rua, porque tinha uma muretinha em volta, o pessoal sentava ali e defecava ali no meio. Chegava por volta das 11 horas, meio-dia, era um mau-cheiro desgraçado. E ali embaixo, tinha uma portinha que o cara entrava e dava corda no relógio, mas o cheiro era tão ruim, que ninguém mais queria dar corda no relógio. Tinha que dar corda um dia sim e um dia não.

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Relógio da 14, onde ninguém queria dar corda
Foto: Deurico/Capital News

Capital News: Qual foi a época mais poética de Campo Grande?

Higa: Quando você é jovem, tudo é mais poético, então pra mim foi a década de 70, quando Campo Grande começou a explodir. Começaram a aparecer os butequinhos nas esquinas, então as pessoas queriam se concentrar. Como aqui não temos rio, não temos praia, as pessoas começavam a se juntar nas ruas. Eles ficavam na calçada e ficavam assim (pose de uma pessoa encostada em um muro, estalando os dedos, como se acompanhasse o ritmo de uma música). E as meninas passavam na rua, e tinha aqueles alto-falantes na rua, então o locutor ficava mandando recado: você que está em tal lugar, com a fita verde no cabelo, o fulano de tal aqui está a sua procura. E você pagava para anunciar aquilo. E nessa brincadeira, muitos casamentos começaram por aí. Em 1971, veio a Universidade, e aí no Lago do Amor tinha o pedalinho. Então muita gente de 40 anos foi feita ali, no pedalinho.

Capital News: Qual foi a foto mais importante que você fez?

Higa: Tem uma foto muito famosa minha que foi a do Marçal de Souza, que circulou o mundo inteiro, foi o meu Che Guevara. Eu conheci o Marçal como aplicador de injeção no posto de saúde, como técnico.

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Marçal de Souza, o Che de Higa
Foto: Deurico/Capital News

Capital News: E qual era o assunto que você mais acompanhava?

Higa: Eu aprendi que o meu equipamento fotográfico não era para ser usado como material para entrar de graça em clube. Porque isso aí bem usado, era uma arma, contra bandido, contra abuso, contra tudo. Então eu não podia usar pra entrar de graça em clube. Eu faço da minha máquina fotográfica um instrumento de denúncia. Eu já fiz as Diretas Já, eu fiz a mudança do nome do Estado, eu fiz a transformação que o Estado sofreu, então eu fiz de tudo, antes o cara era analfabeto e se elegia, e eu acompanhei isso tudo.

Capital News: Quando e como você se tornou fotógrafo?

Higa: Comecei em 1968. Naquela época, se fazia muito filho. Então tinha que trabalhavar muito cedo para ajudar a família. Eu sou de uma família de oito filhos e então com sete, oito anos eu já tinha que estar no mercado de trabalho. Fui engraxate, fui jornaleiro, mas eu fui principalmente aprendiz de telegrafista lá na Noroeste do Brasil, mas eu nunca fui flor que se cheirava, tanto é que meu primário eu fiz em cinco ou seis escolas, de tanto ser convidado a sair. Então certo dia eu cansei e falei: não vou mais trabalhar, eu vou ficar em casa dormindo, e virei um vagabundo. E meu pai não queria que eu montasse um conjunto musical, porque um dia eu saí numa sexta-feira a noite e cheguei na segunda-feira, aí ele quebrou meu violão. Um dia minha irmã foi trabalhar no Diário da Serra, eu tinha 16 ou 17 anos, ela chegou pra mim e falou: e aí, você não quer ir trabalhar lá? É um negócio novo, que vai crescer! Eu fui lá ver como era, comecei a trabalhar como office-boy. E tinha um fotógrafo lá, Danton Garro, muito experiente, que já tinha acompanhado quatro Copas do Mundo, e como se fazia muito filho, ele tinha sete piás. Então ele falou pra mim: Se você pegar meus filhos lá na Joaquim Murtinho, eu vou te ensinar uma profissão. Aí eu comecei a gostar de fotografia. Ele era um dos que falava isso: "não usa essa máquina para enfeitar pescoço e nem pra entrar de graça em clube". Hoje eu sou tão apaixonado por fotografia que nem sei filmar; minha máquina filma, mas eu nunca filmei.

Capital News: Já cogitou entrar para a política?

Higa: Uma vez um amigo me chamou:" vamos encarar esse negócio de vereador?" Foi em 81 ou 82, você se elegia com 300 votos. Então ele falou: "eu tenho 600 votos na minha família, calculo mais 600 votos na família da minha noiva, e eu sou repórter, acho que vou ser o mais votado. Quando abriram as urnas, ele tinha 47 votos". Então cara, esse negócio de política, você tem que nascer para isso. Eu nunca fui inscrito em partido. Quem faz fotografia bonita de político é assessor, eu faço reportagem fotográfica.

Capital News: E a barba, tem quantos anos?

Higa: Olha, em 76 ou 77, por aí, teve a possibilidade de o primeiro candidato eleito senador de Mato Grosso ser governador em Mato Grosso do Sul. Então a gente saiu em campanha pelo Dr. Pedro Pedrossian pelo estado inteiro. Aí chegou lá em Bocaina (no município de Inocência), terminou o comício e tinha um salão na igreja de lá. E nós fomos pro baile. Eu pesava cerca de 40 quilos e estava com uma camisa vermelha colada no corpo. E lá, toda hora passava um homem atrás de mim de chapéu, bombacha, bota e aquela guaiaca na cintura. Ele olhava pra mim e tomava um gole. Rapaz, lá pelo quinto copo que ele toma, chegou pra mim e disse: "vamos dançar?" Eu usava cabelo comprido e não usava barbicha. Aí eu levantei e falei: Cara, a gente até pode dançar, mas não vai encaixar. Ele não entendeu! Ele me sentou numa cadeira e falou: "se não vai dançar comigo não dança com mais ninguém!" Rapaz, o pau rolou, e o único que não apanhou fui eu, porque tinha uma janelinha no banheiro e eu escapei por lá e fui embora. Todo mundo quebrou um braço, uma perna, porque as cadeiras naquele tempo eram de madeira. O cara foi embora e voltou com mais nove, porque dizia que a cidade era dele. E aí o pau rolou e não teve quem segurasse. Eu fui embora e só no outro dia que vi o estrago.

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A barbicha tem sua própria história
Foto: Deurico/Capital News

Capital News: Qual foi a sua máquina fotográfica favorita?

Higa: Eu comprei na década de 70 um equipamento que era o topo de linha na época, a Asahi Pentax, de lente cambiável. Eu podia não ter carro, mas eu tinha que ter uma máquina boa. Com o que eu paguei nela pagava um carro novo. E vinha do Japão, custava uma grana. Era uma coisa de tara pela profissão.

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A Pentax que o acompanhou durante anos, hoje em sua estante
Foto: Deurico/Capital News

Capital News: Você é filho de família japonesa?

Higa: Sim, sou nascido em Campo Grande, meus avós são japoneses, meus pais já são nissei, eu sou yonsei, e agora os meus filhos eu já “num sei”.

Fotos do Fato Redes Sociais Capital News

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