Campo Grande Sábado, 20 de Abril de 2024


Opinião Sexta-feira, 19 de Abril de 2019, 13:15 - A | A

Sexta-feira, 19 de Abril de 2019, 13h:15 - A | A

Opinião

Enquanto o fogo consumia minha herança

Por Percival Puggina*

Artigo de responsabilidade do autor
Envie seu artigo para [email protected]

Anteontem, enquanto observava, aflito, parte da minha herança arder flamejante no coração de Paris, eu pensava sobre essa dimensão de nossa natureza, perdida pelo esquecimento e consumida nas chamas da perversidade. Nas conhecidas palavras de Émile Henriot: “Cultura é o que resta quando esquecemos tudo”. E nós, estamos esquecendo esta condição de herdeiros de uma cultura, de usufrutuários das imateriais riquezas da civilização ocidental.

puggina.org

Percival Puggina

Percival Puggina

 

O cotidiano me adverte ainda mais. Estamos sendo ensinados a desprezar toda essa herança, a começar por nossas raízes; a ultrajar os pais da Pátria; a viver sem fé, sem origem e sem sentido; a lastimar o passado, num presente lastimável, rumo a um lastimável futuro. Não estou fazendo frases, leitor amigo, estou amargamente curioso. Quero saber dos algozes da mais elevada, rica e culturalmente produtiva civilização que a humanidade conheceu: qual vosso ponto de chegada? Aonde vamos com negação do belo e com a aclamação do horrendo e do perverso em todas as formas de arte? Se abandonamos tudo que eleva o espírito, a força de gravidade o derruba para o nível das mais rasteiras paixões! Por isso deveríamos aprender a reconhecer e amar o bem, o belo, o bom e o justo. Mas quem cuida disso?

O passar dos anos desenvolveu em mim, com intensidade crescente, a consciência de ser um ocidental. Quem me dera, também, a ciência! Esse sentimento se aprofundou à medida que, em sucessivas viagens e como principal interesse de todas, minha mulher e eu visitamos centenas de igrejas românicas, góticas e barrocas em toda a Europa. São obras empreendidas por gerações de artesãos, artistas e operários que morriam sem as ver prontas, seguidos de outros, e de outros, ao longo de séculos. Não há como não ver materializado aí o sentido do sagrado e o sagrado sentido da herança cultural. Tal riqueza diz presente, também, nos museus, nas artes visuais, na literatura, na música, na dança, no teatro e na difícil, mas positiva, evolução das instituições políticas.

Essa cultura chegou até nós nas caravelas de Cabral. Sim, veio a bordo coisa boa e coisa ruim. Veio salvação e perdição. O que dói na alma, cinco séculos passados, é ver tanta gente escrutinando a coisa ruim e a perdição. O que dói em mim é saber, como sei, por que tantos jovens me contam, do mesquinho trabalho a que se dedicam os incendiários de catedrais interiores. Em vez de as construir, fazem-nas arder no cultivo de maus sentimentos, no desrespeito ao nosso belo idioma, na animosidade em relação ao amável Portugal e aos pais da nossa pátria, na negação da fé sem a qual não haveria essa cultura e essa civilização.

Assim, com redobrada tristeza, as chamas que queimavam minha herança em Notre-Dame me faziam lembrar das catedrais interiores que queimaram, ou que não foram nem serão construídas por falta de artesãos.

 

 

*Percival Puggina (74)

Membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

• • • • •

 

A veracidade dos dados, opiniões e conteúdo deste artigo é de integral responsabilidade dos autores e não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Capital News

 

Comente esta notícia


Reportagem Especial LEIA MAIS