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Domingo, 09 de Junho de 2019, 11h:58

Marcel Duchamp e Jeff Koons: artistas que desafiaram a arte

Por Vinícius Mendes

Da coluna Cultura
Artigo de responsabilidade do autor

Ao transformar objetos comuns em obras de arte, eles geraram todo um debate sobre o que é o fazer artístico

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Depois da primeira década do século XX, Marcel Duchamp começou a se frustrar como pintor e a perder o interesse pelo que chamava de "arte retiniana". Os objetos cotidianos que passou a apresentar, a partir de então, como ready-mades, eram até aquele momento a antítese da arte. Com aquele gesto revolucionário, o artista francês colocou ao mundo o desafio de enfrentar um objeto não por seu valor estético, mas em busca de reflexões que o tirariam do seu contexto.

Fountain (A Fonte), seu ready-made mais famoso e controverso, era um mictório invertido que foi assinado sob o pseudônimo R. Mutt para a exposição da Sociedade de Artistas Independentes de Nova York, de 1917.

Duchamp defendeu a peça em um artigo anônimo na revista The Blind Man: "Que o senhor R. Mutt tenha feito ou não a fonte com suas próprias mãos não tem importância. Ela foi escolhida por ele", disse. Selecionar um elemento de uso cotidiano para retirá-lo de seu valor utilitário e apresentá-lo como arte é uma provocação que até o dia de hoje não se esgota.

A provocação intelectual e filosófica que significou seu ato para a ontologia da arte e para o que significava ser ou não artista eliminou o peso que até então a obra artística carregava, assim como o talento do seu criador, para deixar claro que a arte também está no reino das ideias -- e é nelas, na verdade, onde está seu maior poder. É nas ideias, segundo Duchamp, onde tudo é possível, não na obra de arte. Tempos depois, ele escreveria que o verdadeiro objetivo do ready-mades "era impedir a possibilidade de se definir a arte".

"Todo artista deve a Duchamp essa liberdade e a infinidade de debates que a rodeiam. Sua obra segue e seguirá sendo capaz de sustentar discussões com os artistas de nosso tempo e os que virão", diz Newton Santos, professor de História da Arte da Universidade Paulista (UNIP).

Foi o que aconteceu, por exemplo, com o artista estadunidense Jeff Koons, de 64 anos -- duas décadas distante de Duchamp e que leva suas discussões adiante no mundo artístico contemporâneo, apesar das diferenças nos universos criativos. Ambos questionaram e exploraram a fascinação pelos bens de consumo e pelas novas noções da arte em temas como autoria, originalidade e corrupção. Os dois também compartilham a obsessão pelo que o professor de História da Arte do Graduate Center, em Nova York, David Joselit chamou de "erótica das coisas".

A erótica das coisas é, segundo Joselit, o poder que os objetos têm em evocar desejos e projetar ou refletir sexualidade. No aspecto pessoal, as coisas que escolhemos dizem muito sobre quem somos, mas no campo da arte, Duchamp decidiu responder ao dilema da escolha recorrendo à indiferença ou ao azar. Uma forma de descartar a até então intocável suposição de que o gosto, a beleza e os juízos estéticos são padrões definitivos para a arte.

Como tantos herdeiros de Duchamp, as peças mais emblemáticas de Koons são objetos cotidianos: uma lanterna, uma janela, um lápis. A ideia não é apenas apresentá-los como tal, mas refazê-los em maior escala, com uma precisão industrial e um profundo conhecimento do mercado. "Duchamp foi capaz de mudar a forma que vemos tudo. Nos fez saber que nossa mente tem a capacidade de se abrir cada vez mais e que todos podemos participar da cultura", disse Koons em uma entrevista ao New York Times em 2015.

Em maio, a leiloeira britânica Christie's vendeu uma peça sua por US$ 91 milhões (R$ 361 mi, na cotação de junho) -- Rabbit, uma escultura de aço inoxidável em forma de um coelho inflável. O comprador foi Robert Mnuchin, comerciante de arte e pai do secretário de Estado do governo do presidente Donald Trump, dos EUA. Koons disse que o montante lhe surpreendeu, mas não quis falar muito mais sobre a venda. Ele, no entanto, está acostumado com controvérsias -- muitas delas provocadas por ele mesmo.

Em sua série Made in Heaven, ele aparecia recriando cenas explicitamente sensuais com sua esposa, a atriz pornô Ilona Staller, conhecida como La Cicciolina. No passado, a especulação financeira em torno de suas obras ou mesmo processos que recebeu por plágio fizeram seu nome circular em outras rodas que não as artísticas: há alguns anos, o Centre Pompidou, em Paris, retirou uma obra dele de uma exposição por conta de uma denúncia de cópia. Mas provocar é parte de sua carreira desde o início, quando lançou a série Banalidade, uma peça de publicidade em que aparecia com porcos e mulheres de biquíni.

"Nenhum outro artista se presta à caricatura dos ricos como ele. Tem um apetite voraz pelo que é 'vulgarmente brilhante'. A brincadeira se torna mais difícil quando, chegando perto do seu trabalho, com olhos e mentes abertos, se encontra uma formidável inteligência estética", escreveu Peter Schjeldahl, jornalista da revista estadunidense The New Yorker.